Portugal na linha da frente da erradicação do cancro do colo do útero
É o segundo tumor maligno mais frequente nas mulheres portuguesas, com 500 novos casos todos os anos. Mas a vacinação e o rastreio podem levar à eliminação da doença em 15 anos.
É um tumor silencioso. Quando surgem os primeiros sintomas do cancro do colo útero - sangramento intenso e dor na zona pélvica - já a doença está ativa no organismo há pelo menos 10 anos.
É por isso, a segunda causa de morte em mulheres com menos de 44 anos. Mortes que poderiam ser evitadas. É que a grande maioria destes cancros é provocada pela infeção de um vírus, o papilomavírus humano (HPV), para o qual existe uma vacina eficaz. Um vírus que também provoca cancro nos homens.
No Dia Internacional de Consciencialização sobre o HPV a SÁBADO entrevistou Rui Medeiros, vice-diretor do Centro de Investigação do IPO Porto, membro da direção da Organização Europeia do Cancro e da direção da Liga Portuguesa Contra o Cancro Núcleo Regional do Norte.
Qual é a incidência do cancro do colo do útero em Portugal?
Em Portugal, a incidência foi estimada em 10,7 casos por 100.000 mulheres-ano em 2020 (cerca de 500 novos casos por ano). Este tipo de cancro é o segundo tumor ginecológico maligno mais frequente em mulheres portuguesas com menos de 50 anos.
O HPV é responsável por todos os tipos de cancro do colo do útero?
O HPV é um vírus cuja via de transmissão principal é a atividade sexual. Tem muitas variantes e algumas delas associam-se ao desenvolvimento de cancro. Este conhecimento resultou de muitos anos de investigação, sendo que a descoberta de que havia um vírus responsável por praticamente todos os casos de cancro do colo do útero ganhou um Prémio Nobel. O HPV é também responsável por alguns outros tipos de cancro, como o caso de alguns tipos de cancro da cabeça e pescoço.
Como é que o vírus provoca o cancro?
Sabemos que alguns dos genótipos de HPV são responsáveis pelo processo de desenvolvimento do cancro do colo do útero por produzirem dentro da célula algumas proteínas virais que irão ativar a destruição de proteínas celulares muito importantes em processos de controle de qualidade celular. Isto provoca a acumulação de erros genéticos com a consequente acumulação de células potencialmente oncogénicas. Sabemos que este fenómeno é favorecido pela ação de substâncias como as existentes no fumo do cigarro ou com a baixa na imunidade.
Estima-se que cerca de 90% das pessoas sexualmente ativas tiveram contacto com o vírus. O vírus nem sempre desenvolve uma infeção?
Esta percentagem não é consensual no número, mas sabemos que é elevada e muito frequente. Alguns estudos feitos por nós em mulheres jovens não vacinadas e ainda antes da vacinação pelo PNV [Plano Nacional de Vacinação] apontavam para cerca de 20% em cada ano. No entanto, a maioria das infeções por HPV são assintomáticas e desaparecem espontaneamente.
O vírus pode ser eliminado pelo organismo. Em que situações isso não acontece?
Geralmente, as pessoas nem se apercebem que estão infetadas, ao contrário do que acontece com uma gripe originada por vírus em que há uma resposta imunitária que provoca febre e dores musculares e desaparece numa semana. No caso do HPV, a resposta imunitária é menos evidente e o vírus só desaparece ao fim de seis meses ou um ano.
Quanto tempo é que o vírus pode estar no organismo até provocar sintomas?
Uma infeção por HPV não é visível inicialmente e raramente e sintomática, excepto com persistência do vírus, quando há evolução para cancro ou outro tipo de lesões. Temos sempre a considerar dois tipo de efeitos pelo HPV. No primeiro caso pode causar as lesões verrucosas ou condilomas [verrugas genitais] que apesar de não serem considerados como cancro são bastante agressivas e com grandes implicações na saúde e qualidade de vida da mulher. Por outro lado, temos a evolução para alterações nos tecidos que eventualmente irão progredir para cancro avançado. Vários estudos indicam que o tempo médio entre uma infeção persistente pelo HPV e o desenvolvimento de cancro será de cerca de 10 a 15 anos.
Quando ocorrem sintomas em que estádio se encontra o cancro do colo do útero?
A ocorrência de sintomas indica uma fase mais avançada das alterações nos tecidos e potencialmente a ocorrência de cancro invasivo. A forma mais eficaz de evitar o vírus é a vacinação e o rastreio. Atualmente em Portugal, no rastreio é utilizada tecnologia bastante avançada que permite uma deteção muito precoce, ainda antes de termos cancro. A mulher deve ser seguida por um ginecologista e o homem por um urologista. Estes especialistas têm toda a informação necessária. Por outro lado, em Portugal temos oferta de vacinação e de rastreio que são essenciais para garantir, com a sua combinação, uma proteção bastante alargada.
O HPV provoca outros tipos de cancros? Quem está mais em risco, mulheres ou homens?
As relações sexuais são consideradas a principal forma de infeção pelo HPV e o cancro do colo do útero a principal neoplasia resultante. Contudo no HPV a transmissão ocorre através de mucosa a mucosa, pele a pele, e também pode afetar na mulher outros tecidos genitais e também o cancro da cabeça e pescoço, que tem cerca de 20% dos casos associados ao HPV. Os restantes estão associados ao tabaco ou outras exposições de origem química como o álcool. No homem estão associados ao HPV casos de cancro do pénis e da cabeça e pescoço.
Há casos de cancro do colo do útero em jovens mulheres, na casa dos 20?
Os estudos indicam que a infeção ocorre durante o início da atividade sexual e quando se torna persistente teremos 10 a 15 anos até ao desenvolvimento de cancro. Estes são valores médios que podem ser acelerados por fatores genéticos ou imunitários. Mais ainda, estudos por nós realizados indicam que o fumo do cigarro é um grande acelerador deste processo de desenvolvimento de cancro do colo do útero pois favorece a ação do HPV.
Os números têm aumentado ou diminuído nos últimos anos?
Devido ao investimento que tem sido feito na vacinação e no rastreio é neste momento evidente a tendência descendente na incidência, ou seja, numa diminuição no número de casos. No entanto, para cada caso detetado é necessário refletir sobre o que ainda falha na prevenção de um cancro evitável na grande maioria dos casos. Um alerta tem que ser feito para a importância da inclusão de todos os residentes em Portugal no nosso sistema de vacinação e de rastreio, e isto é particularmente relevante nos novos fenómenos de imigração.
Em Portugal, a vacina encontra-se no plano de vacinação para rapazes e raparigas?
A vacinação contra o HPV está incluída no Plano Nacional de Vacinação para raparigas e rapazes desde os 10 anos de idade. Em outubro de 2020 a vacina foi alargada a rapazes.
A vacina para raparigas e rapazes pode eliminar o vírus e o cancro?
Sim, devido à evolução dos últimos 30 anos e a importância da investigação. Como resultado dos estudos de investigação foram desenvolvidas duas intervenções que são essenciais - vacinação e rastreio molecular com teste ao HPV. Esta mensagem é importante porque todos os indicadores apontam que, nos países onde estas intervenções ocorrem em simultâneo (como na Europa, inclusive Portugal), esta combinação resultará na erradicação do cancro do colo do útero. Para este facto temos uma projeção a 15 anos, mas em alguns países como nos casos de Portugal e da Suécia possa acontecer mais cedo. Mais uma vez uma grande oportunidade de Portugal estar na linha da frente da proteção das suas populações com medidas de Saúde Pública eficazes.
Que países da Europa também incluem a vacinação para o HPV para rapazes e raparigas?
Infelizmente ainda não são muitos. Portugal surge novamente como exemplar a par da Alemanha, Reino Unido, Itália e França.
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