Secções

A ciência de Severance: poderíamos dividir a nossa vida?

Pedro Henrique Miranda 20 de janeiro de 2025 às 07:00

A série distópica de ficção científica que conquistou o mundo inaugura hoje a sua segunda temporada. Haverá uma base factual na sua premissa?

A estreia da segunda temporada deSeverance(Separação), título de êxito da AppleTV+ que fez furor aquando do seu lançamento, em 2022, promete revelar mais segredos sobre uma premissa simples, mas inegavelmente bem-sucedida: e se pudéssemos apagar todas as memórias do tempo que passamos a trabalhar, de modo a que, todos os dias, no momento em que saíssemos, a última memória que teríamos seria a de termos entrado?

Com atuações eloquentes, personagens empáticas e a experimentação com a mente humana a cargo da enigmática multinacional Lumon Industries, a série foi amplamente reconhecida pelo seu tratamento de questões laborais, incluindo a crítica da cultura corporativa, desumanização dos trabalhadores no capitalismo e o privilégio dos resultados e da produtividade sobre o bem-estar pessoal. 

No ramo da neurologia e da psicologia, no entanto, Severance parece dizer algo mais fundamental sobre a psique humana: na série, a perda de memória do tempo de trabalho do "eu" que vive no mundo de fora implica que, dentro do espaço laboral, exista outro "eu", com memórias, experiências e até personalidade diferentes. Esta ideia sugere que, dada a tecnologia adequada, poderíamos efetivamente separar a mente em dois. Mas seria isso possível, neurocientificamente falando?

O caso mais próximo será, porventura, o dos hemisférios separados: pacientes aos quais é removido um dos hemisférios cerebrais ou cujos hemisférios são separados para tratar doenças como a epilepsia - hemisferectomia anatómica ou funcional, respetivamente. No primeiro caso, verifica-se que, apesar de consideráveis limitações, os pacientes permanecem funcionais, com um dos hemisférios a dar conta da carga mental.

Já no segundo, há relatos de casos, ainda que com alguma raridade, em que os dois hemisférios parecem apresentar vontades e comportamentos distintos, e por vezes mesmo contraditórios: o exemplo da "alien hand syndrome" (síndrome da mão alienígena), em que uma das mãos parece ganhar vontade própria, a despeito do resto do corpo. 

https://youtu.be/_UXKlYvLGJY?si=upG6abLMN64zR44j

Esta poderá ter sido a inspiração para alguns dos conflitos retratados na série entre os innies e os outies - as versões das personagens que vivem dentro e fora do ambiente de trabalho. É o caso da personagem Helly R, interpretada pela atriz Britt Lower, cuja innie entra em confronto direto com a respetiva outie quando esta se recusa a anular o procedimento que mantém uma versão de si a trabalhar indefinidamente.

Para Alexandre Castro Caldas, neurologista e diretor do Instituto de Ciências de Saúde da Universidade Católica Portuguesa, no entanto, a ideia de hemisférios com vontades separadas é tão ficcional quanto a própria série. "Isso foi uma fantasia que se criou na década de 70, baseada em literatura de pessoas que nunca lidaram com pacientes", afirma à SÁBADO, explicando que os hemisférios "estão em comunicação constante e funcionam como órgão único".

O especialista acrescenta que, no dia a dia, "estamos sempre a ir buscar informação aos dois hemisférios", uma área que a neurociência ainda não compreende com clareza. "Para percebermos como a informação se dispersa pelo cérebro em funções mais sofisticadas, é preciso perceber os fatores de integração entre os hemisférios", explica, dizendo que a neurociência está "a criar modelos matemáticos para fazer as conexões entre os polos, mas ainda são muito grosseiros".

Quanto à possibilidade de virmos a separar mentes num mesmo corpo, como sugere a série, o neurologista afirma que essa hipótese "está muito longe daquilo que conhecemos sobre a função cerebral". Esclarece que "é impossível separar a identidade da memória", na medida em que "a memória é a nossa forma de sustentar a nossa experiência de vida, em conjunto com os nossos genes".

Dado que a identidade é o resultado da interação entre a nossa biologia e experiência, poderíamos dar à mesma pessoa outra identidade se ela tivesse outra experiência e memórias? "Provavelmente", responde Castro Caldas, "mas tem que haver harmonia entre memórias, que são muitas e muito diferentes" - "o sistema que lida com memória episódica é completamente diferente do da memória autobiográfica, são memórias distintas que não conseguimos separar ou considerar em bloco".

Artigos Relacionados
Descubra as
Edições do Dia
Publicamos para si, em três periodos distintos do dia, o melhor da atualidade nacional e internacional. Os artigos das Edições do Dia estão ordenados cronologicamente aqui , para que não perca nada do melhor que a SÁBADO prepara para si. Pode também navegar nas edições anteriores, do dia ou da semana.
Boas leituras!
Artigos recomendados
As mais lidas
Exclusivo

Operação Influencer. Os segredos escondidos na pen 19

TextoCarlos Rodrigues Lima
FotosCarlos Rodrigues Lima
Portugal

Assim se fez (e desfez) o tribunal mais poderoso do País

TextoAntónio José Vilela
FotosAntónio José Vilela
Portugal

O estranho caso da escuta, do bruxo Demba e do juiz vingativo

TextoAntónio José Vilela
FotosAntónio José Vilela