“As escolas não consideram as dificuldades dos miúdos com dislexia uma prioridade", alerta associação
Cerca de 120 mil alunos portugueses têm dificuldades em ler e em processar informação. A lei prevê que a escola dê apoio, mas muitas não recebem o acompanhamento adequado. Foi o que aconteceu a Carlota Martins.
Carlota era uma criança inteligente. "Com cinco anos, argumentava connosco quando não queria algo ou convidar alguém para uma festa", conta o pai Eugénio Martins, de Ponte da Barca. Por isso, foi com surpresa que os pais reagiram quando a professora do pré-escolar os avisou que a menina precisava de fazer terapia da fala.
"Ela trocava o ‘z’ pelo ‘j’, dizia ‘Até zá’ em vez de ‘Até já’", conta Eugénio Martins. Carlota foi acompanhada na terapia da fala durante dois anos. "Encheu cadernos com palavras, aprendeu a identificar os erros e como corrigi-los." Aos sete anos, recebeu alta da terapia da fala. "Pensámos que o problema estava resolvido."
Mas no 1º ano da escola, Carlota sentiu dificuldade em acompanhar os colegas. "Era excelente nos números, mas tinha dificuldade nas letras", conta o pai. A psicóloga da escola diagnosticou-lhe uma dislexia ligeira, avisou que seria mais difícil para ela aprender o inglês, e que teria algumas dificuldades nas disciplinas.
Sem apoio de professores de educação especial
A dislexia é uma disfunção neurológica que torna mais difícil aprender a ler porque não se distingue algumas letras e é preciso fazer um esforço para formar palavras e compreender o que significam. "O diagnóstico só é feito no final do 2º ano, início do 3º ano, mas há sinais de alerta que podem ser detetados logo no pré-escolar e as escolas devem ter esse foco", diz Fátima Almeida, professora de educação especial e membro da direção da Dislex - Associação Portuguesa de Dislexia. "A lei não exige um diagnóstico para que as escolas intervenham e quanto mais cedo for a intervenção melhor."
Apesar do diagnóstico da psicóloga da escola, Carlota não recebeu um acompanhamento com com professor de Educação Especial, como prevê o decreto-lei nº54\2018 sobre a escola inclusiva. O objetivo é que todos os alunos, independentemente das suas necessidades específicas, possam receber uma educação de qualidade adaptada a cada um.
Para isso, as turmas não podem ter mais do que duas crianças com necessidades específicas e estas turmas não podem exceder os 20 alunos, mas o acompanhamento em sala de aula é complexo. "Não diria que é impossível, mas é muito difícil", diz Fátima Almeida. "As escolas têm mais diversidade cultural e há mais questões de comportamento que dificultam o trabalho do professor de educação especial", continua. "Mas nunca como agora as escolas têm tantos recursos disponíveis."
A questão é que os professores de educação especial, contratados para apoiar os alunos com necessidades específicas, acabam por não dar apoio aos alunos com dislexia. "As escolas não valorizam a dislexia e os alunos diagnosticados não recebem resposta dos professores de educação especial", diz Fátima Almeida, também membro da direção da Associação Portuguesa de Dislexia. "É uma condição invisível, por que se olha para o aluno e não se vê qualquer problema."
Os alunos que não recebem apoio correm mais risco de insucesso escolar e não só. "Os alunos que só conseguem aprender a ler no 3º ou 4º ano já perderam imenso, também a nível da auto-estima, sentem-se inferiores perante os pares para quem tudo parece ser mais fácil", explica Fátima Almeida.
Treinar a memória de trabalho
Não uma questão de falta de recursos. "As escolas alocam os professores de educação especial para alunos com adaptações curriculares significativas e cognitivamente mais comprometidos", explica Fátima Almeida. "E, muitas vezes, este apoio retira os professores de educação especial da sala de aula, impossibilitando a intervenção com alunos com dislexia", acrescenta.
Há escolas que recusam mesmo o apoio, quando solicitado pelos pais. "A lei não impede que os alunos disléxicos sejam acompanhados por professores de educação especial, mas as escolas não consideram as dificuldades dos miúdos com dislexia uma prioridade", reforça Fátima Almeida.
A associação não considera ser uma questão financeira. "As escolas podem solicitar ao Ministério da Educação mais professores de educação especial, mas não solicitam porque só os consideram para os alunos com necessidades específicas mais graves."
Segundo Fátima Almeida, as escolas consideram que é suficiente dar mais apoio a estes alunos nas aulas de Português. "Mas é errado. Estes alunos precisam de trabalhar as áreas causais: como a memória do trabalho e a compreensão da leitura".
A memória de trabalho, responsável por processar a informação recebida e essencial na leitura, interpretação de textos e na matemática, está afetada em crianças com dislexia. "É como se fosse um bloco de notas do cérebro: estas crianças leem um texto e esquecem, não conseguem interpretar o que leram."
É o que acontece com Carlota Martins. "Quando era mais nova ela lia um texto, e se lhe perguntávamos sobre o que tinha lido ela não conseguia dizer. Mas se fossemos nós a ler o texto em voz alta, ela já conseguia responder", conta o pai. "Parecia que estava a brincar connosco", acrescenta.
Apesar das dificuldades, Carlota conseguiu ter boas notas. "Ela sempre foi muito empenhada no estudo, queria fazer igual aos outros e foi evoluindo", conta o pai. Mas ocupava todo o tempo livre para estudar. "Estudava no sábado, no domingo, lia e relia, precisava de muito tempo", conta o pai.
Boa aluna com dificuldades
As boas notas influenciaram a atuação da escola. "Eles duvidavam do diagnóstico porque ela era boa aluna, pensavam que era um exagero", conta Eugénio Martins. Atribuíram-lhe as medidas universais, previstas na lei, como mais tempo para realizar os testes. "Mas não teve acompanhamento específico", queixa-se.
Para Fátima Almeida, os alunos com dislexia deveriam ter acompanhamento num horário supletivo. "Os alunos mais velhos não gostam de ter acompanhamento na sala de aula, sentem-se diferenciados."
Uma das soluções seria a aplicação da metodologia desenho universal da aprendizagem, prevista na lei, e que adapta as aulas e os materiais pedagógicos consoante as dificuldades de cada aluno. "Dá trabalho, mas é possível e torna o ensino mais inclusivo. Mas quantas escolas o aplicam?" pergunta Fátima Almeida.
Este método permitia que estes alunos não se sentissem tão diferentes. "Estas crianças podem ter as perguntas dos exames lidos pelo professor, mas não querem. Se o professor ler as perguntas a toda a turma, seria uma forma de diminuir o estigma", sugere Fátima Almeida.
Ansiedade e frustração
O esforço de Carlota em estudar e ter boas notas teve consequências. "Desenvolveu uma perturbação obsessiva-compulsiva", diz Eugénio Martins. "Os projetos escolar geram-lhe estados de ansiedade que lhe provocam problemas digestivos. E sente uma grande frustração por ter de se empenhar tanto em comparação aos colegas." Tem tido acompanhamento psicológico fora da escola.
É o que fazem os pais que têm capacidade financeira. Há escolas com parcerias com clínicas, pagas através da Segurança Social dependendo dos rendimentos dos pais. "Mas alguns pais têm de pagar e recusam fazê-lo por falta de meios", diz Fátima Almeida.
No ano passado, Carlota fez nova avaliação e foi-lhe diagnosticado dislexia bilateral severa. "O cérebro dela está cruzado: o centro de comando está no hemisfério direito, mas a audição está no esquerdo e isso faz com que demore mais tempo a processar informação", explica o pai. O diagnóstico foi recebido pela adolescente com alívio. "Ela entende-se melhor, chorou muito."
Agora, com 17 anos, no 11º ano, deixou de ter mais tempo para fazer os exames. "Reunimos relatórios e toda a documentação, mas o Ministério levanta questões, parece ter receio de beneficiar alguém." Mas foi-lhe atribuída a ficha A, em que não são contabilizados os erros ortográficos nos exames nacionais.
Apesar das dificuldades, Eugénio Martins reconhece que a escola evoluiu. "Eu nunca fui diagnosticado, mas lembro-me de levar muitas reguadas na escola porque não conseguia estar quieto na secretária", recorda. "Temos mais conhecimento, mas falta passar essa informação às famílias e às escolas para melhor compreendermos estas crianças", conclui.
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