Artistas protestam contra o Spotify: "O total que receberam quase nem para uma refeição dava"
Pagam mal, ou nem pagam, criticam os músicos. O coro de protestos faz-se ouvir nas últimas semanas e alguns saem da plataforma, numa altura em que o CEO da tecnológica investe mais de 500 milhões para fins militares. Alex FX, referência na música eletrónica, explica à SÁBADO os meandros deste suporte digital onde esteve durante mais de quatro anos. Nada ganhou em royalties.
Algures em 2015, Alex Fernandes, 55 anos, um dos músicos mais respeitados da eletrónica nacional (assina Alex FX), entrou na montra online do Spotify. As suas remisturas lá circulavam – por ter trabalhado com os Da Weasel, Mão Morta, Belle Chase Hotel e Repórter Estrábico, entre outros –, mas não aparecia em nome próprio. Pensou à escala global (ainda que num mercado de nicho), potencialmente em mais seguidores de ouvido apurado, mais músicas vendidas (em doses q.b.), mais capacidade para investir em equipamento – os instrumentos musicais e a tecnologia de estúdio são a sua matéria-prima.
Sendo artista à margem da pop, sem pretensões de chegar às massas e livre de "quaisquer amarras ou trendings digitais" (trabalha como especialista de produto na área informática), o português quis experimentar o então promissor suporte, criado em 2006 em Estocolmo (Suécia). A editora que o representava (Dead Motion) abriu-lhe lá conta, na expectativa de dar visibilidade ao álbum Echomental/1 e posteriormente aos quatro EP'S.
Só que as esperanças não passaram disso mesmo. Nem chegou aos quatro mil seguidores; quanto aos royalties a desilusão foi ainda maior. "Literalmente zero! Até hoje, o tema mais escutado no Spotify associado a mim é uma remistura que fiz para os Da Weasel em 1997, recentemente incluída nas reedições em vinil do 3º Capítulo. Nestes casos, os royalties revertem para a editora [refere-se à EMI-Valentim de Carvalho]", explica à SÁBADO.
Mandamento dos mil streams
A partir de 2019, Alex FX foi retirando, de forma gradual, as suas faixas da plataforma de streaming e inteirando-se das polémicas em torno da mesma. Em abril de 2024, mais descontente ficou ao saber que o Spotify só pagaria royalties aos artistas a partir dos 1.000 streams (temas ouvidos pelos utilizadores durante 30 segundos, pelo menos), durante um ano. "Olho para o Spotify como uma espécie de Red Light District. Tenho a noção e orgulho de trabalhar para um nicho, mas sou mais bem tratado fora da plataforma mais conhecida do mundo. E estar lá, em termos do que sou ressarcido, é insultuoso."
Quando fala do assunto com outros artistas (alguns mediáticos), inseridos neste suporte digital, dizem-lhe "que o total de dinheiro que receberam do Spotify quase nem para uma refeição dava." Mas deixam-se ficar, porque, alegam "é o sítio onde és mais visto". Alex FX desilude-se com parte do público por não compreendê-lo: "Acham que as minhas ações (ou as de outros artistas) são retaliações contra eles, quando simplesmente são contra as políticas das plataformas para com os artistas".
É certo que, na perspetiva do utilizador, o Spotify "é uma ferramenta tremenda" de descoberta de novos artistas, diz. Mas adverte: "Se deixarmos perpetuar uma situação destas, a exploração dos músicos manter-se-á. É um pouco a velha máxima de 'não me peçam para dar a única coisa que tenho para vender'."
CEO da Spotify investe em fins militares
Nas últimas semanas, aumenta a insatisfação dos artistas ligados ao Spotify. Alguns fazem como Alex FX: saem e levam a bagagem musical com eles. Fazendo uma analogia, o artista português, residente no Porto, analisa o impacto: "Se os padeiros saírem dos locais onde o seu produto de trabalho árduo é vendido, de que adianta ficar o dono, se apenas sabe mexer na caixa registadora e ter marcas que lhe pagam os toldos e as máquinas de café através de brandings?".
O boicote fez-se notar há dias com a despedida do Spotify dos Deerhoof (banda norte-americana formada em 1994). A reação deve-se aos investimentos de Daniel Ek, CEO do Spotify, na ordem dos 600 milhões de dólares (519 milhões de euros) numa start-up de software militar de inteligência artificial (IA), avaliada em 12 mil milhões.
A Helsing, a empresa em causa, sediada em Munique, obteve o reforço de capital em junho passado. Em termos práticos, o salto tecnológico ajuda a tomar decisões estratégicas rapidamente. Isto numa altura de incerteza e ameaça de guerra mundial, quando os países aderentes à NATO – Portugal incluído – têm de alocar à defesa 5% do Produto Interno Bruto (PIB).
Efeito bola de neve: a editora dos Deerhoof veio a público mostrar-se solidária com a banda e o sindicato norte-americano United Musicians and Allied Workers escreveu na rede social X sem rodeios. "As pessoas que comandam a indústria musical são as mesmas que estão a dobrar a aposta na tecnologia militar de IA. Para construir uma indústria musical justa e equitativa, precisamos também desmantelar o imperialismo em todas as suas formas. Daniel Ek é um belicista que paga salários de miséria aos artistas", declarou.
A 15 de março, a mesma organização sindical já tinha feito ações de protesto em várias cidades: (nos Estados Unidos) Birmingham, Michigan, Boston, Chicago, Los Angeles, Nashville, Nova York e São Francisco; (e no resto do mundo) Berlim, Madrid, Londres, Melbourne, Paris, São Paulo e Toronto, entre outras.
É o momento de reagir em bloco, segundo Alex FX. Não sendo ativista, tem sido uma voz muito crítica nesta matéria: "Esta é a grande oportunidade dos músicos/artistas demonstrarem o poder que realmente têm. Se este tipo de ação/reação não demover ainda mais artistas do que aqueles que já o fazem atualmente, ao retirarem a sua música e abandonarem a plataforma, então é porque há muito conforto em estar nessa Red Light District da música em stream."
Boicotes anteriores
Não é de agora que se fazem boicotes à Spotify. Radiohead e Taylor Swift são alguns nomes intermitentes na plataforma: ora saem dela por estarem insatisfeitos com os royalties; ora voltam (presume-se que depois de renegociarem melhores condições).
Também o produtor australiano Blue Screen mostrou-se crítico e, em 2021, explicou à publicação especializada Resident Advisor a sua posição em relação à plataforma: "Saí porque rapidamente ficou claro que o CEO do Spotify, como todos os bilionários, só enriqueceu a explorar os outros. Como artista, não posso concordar moralmente com pagamentos inadequados de royalties àqueles cujo sustento é a razão do sucesso de Daniel Ek."
Nada que espante o veterano comentador de música Álvaro Costa. Há muito que esperava estes efeitos, previstos no livro, lançado em 2005, The Future of Music: Manifesto for the Digital Music Revolution (O Futuro da Música, Manifesto para a Revolução da Música Digital, tradução livre). "[David] Bowie, autor do prefácio, indica que a música no futuro seria como a água, sempre disponível, e que de Mozart ao New Age estariam ao alcance de todos! Acrescento, e não por acaso, The Winner Takes it All dos suecos ABBA, para resumir o modelo dos compatriotas da Spotify. É para mim uma plataforma de estudo e consulta! Neste caso Golias vence David", comenta o também radialista à SÁBADO.
Mudança para outras plataformas
Blue Screen mudou-se para outra plataforma digital, a Bandcamp, com 16 anos de existência e que dá palco a artistas independentes – alguns mais conhecidos, como Four Tet. Opera de modo justo para os que não são gigantes da indústria (e na maioria dos casos estão na base da pirâmide da Spotify, a chamada "classe trabalhadora" que pouco ou nada ganha).
Alex FX também está na Bandcamp: "O pagamento é direto ao artista, com uma pequeníssima percentagem para plataforma." Quem escolhe os moldes de royalties é o músico: pode definir um preço mínimo por trabalho; ou fixo; ou divulgá-lo gratuitamente; ou fazer desconto se alguém quiser adquiri-lo de uma só vez. "Podemos, paralelamente à versão digital do trabalho, proporcionar a hipótese de o público adquirir versões físicas do mesmo (se as tivermos) ou até merchandise", acrescenta.
Traduzido em números: o artista português tem lá um trabalho com 22 temas nunca lançados oficialmente, que colocou à venda por €1, e houve quem pagasse €20. "Apenas €1 era mais do que alguma vez recebi do Spotify ou de qualquer outra plataforma (Apple Music, Tidal, etc)", diz.
De todas as plataformas, Alex FX não tem dúvidas em apontar a Spotify com "a pior". O funcionamento lembra-lhe a abordagem dos festivais aos grupos menos conhecidos: "'Não pagamos cachet mas vais ter uma projeção enorme, já viste?', e no fundo só precisam é de nomes para encher cartaz e justificar slots de horários que não interessam a ninguém (é verdade que alguém terá de os fazer…). Felizmente, posso trabalhar como artista a uma escala pequena, com o à-vontade adquirido ao longo de muitos anos, de trabalhos no meio musical e isso permite-me ter os convites e oportunidades suficientes para poder continuar a fazer o que gosto, como quero e nos timings e formatos que decidir."
Não pretende encher o calendário de atuações, quer o oposto: pouco, mas específico, "especial, único até", classifica. A maior plataforma de streaming em nada o ajudou, já tinha um histórico desde meados dos anos 90. "Poderia ter crescido mais? Talvez sim, mas não projeto, nem nunca projetei, fazer vida profissional da música. Caso contrário teria de redefinir toda a minha estratégia – e isso iria inevitavelmente refletir-se no meu tipo de trabalho artístico, porque teria de olhar primeiro para o mercado antes de olhar para a arte; isso seria a maior condicionante à minha livre forma de expressão artística."
Sobre os novos artistas ou emergentes é provável que tenham de fazer cedências. Alex FX alerta: "Vão ter de singrar por entre redes sociais, trendings da treta e toda uma panóplia de fait divers para chamarem a atenção ao seu trabalho na montra mais vista do mundo. Se o fizerem sozinhos será um esforço hercúleo; se tiverem uma promotora/management que os auxilie nisso (inclusive na agenda de concertos), vão naturalmente querer a sua fatia e tê-la-ão de ir buscar por entre trocos dos streams, parcelas dos cachets e merchandise dos músicos."
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Boas leituras!