"Trabalho, tenho uma vida digna e fiquei desalojado": moradores do Bairro do Talude sem teto para dormirem
A história de dois irmãos que perderam a construção de chapa e madeira, como tantos outros vizinhos. Passaram a 2.ª feira (14 de julho) a cruzarem-se com agentes da Polícia Municipal e da PSP, num mar de entulho em Loures. As operações de demolição das barracas prosseguem nesta 3.ª feira (dia 15).
Frigoríficos, fogões, brinquedos, mantas e móveis a céu aberto. Os caminhos de terra batida são estreitos (só passa uma pessoa de cada vez) e vão desembocar àquela zona – a mais precária do Bairro do Talude Militar, em Loures, agora um mar de entulho. Agentes da Equipa de Intervenção Rápida da PSP e da Polícia Municipal cruzam-se com os locais, sem conversas. Dois moradores, irmãos de 30 e 35 anos, mantêm-se de cara tapada comT-shirts. Assim protegem-se da poeira levantada pela demolição das barracas e não são reconhecidos se, porventura, alguma câmara de TV ou fotográfica os captar.
São 15 horas de segunda-feira (14 de julho), quando se concretiza parte da "política de combate à ocupação ilegal de território" – termos da Câmara de Loures, em comunicado. Três horas antes, uma retroescavadora da autarquia desfez-lhes a casa improvisada de chapa e madeira. Os irmãos tinham demorado 24 horas a erguê-la e ali ficaram durante dois anos, contam à SÁBADO. "Tínhamos um quarto, uma sala, uma cozinha e uma casa-de-banho."
Havia quem tivesse melhores condições, como acesso à Internet. No caso deles, sobreviviam com os mínimos: um colchão, um televisor e um fogão de campismo. Foi o que salvaram da demolição, mas nem sabem onde guardar as coisas – tão-pouco onde dormir. "Só querem mandar as pessoas para a rua", lamentam. Recordam o espírito de entreajuda da vizinhança: "As pessoas eram unidas, era tudo muito organizado."
Primeira noite ao relento – e depois?
A primeira noite dos irmãos sem teto, como dos restantes desalojados, será passada ao relento junto dos escassos bens. Alguns vão pernoitar em tendas ou na igreja local (uma construção igualmente precária e exígua). O movimento Vida Justa, de apoio aos mais vulneráveis na crise à habitação, acompanha os casos no terreno.
O que se segue é uma incógnita. "Tenho um trabalho digno, nunca fiz mal a ninguém e fiquei desalojado. Estou triste, não só por mim. Aqui há mães com filhos pequenos", diz o irmão mais novo, funcionário de supermercado a ganhar o salário mínimo (€870). E pede humildemente: "Queremos que as mesmas pessoas que nos despejaram sintam compaixão por nós, não sendo de graça porque trabalhamos."
O problema são os preços das rendas, queixam-se. Houve tempos em que um dos irmãos, o mais novo, arrendou um quarto por €450, no mesmo município: além de caro, não se adaptou. "O meu irmão mais velho tinha partido a perna e vim para aqui cuidar dele", justifica. O mais velho sempre trabalhou como motorista de entregas, até ficar com a mobilidade reduzida, mas quer retomar a atividade e já tem colocação prevista.
Resistência às demolições
Desolados, os residentes do bairro caminham pelos despojos das demolições. Prevalece o silêncio: pessoas à deriva filmam o cenário com os telemóveis, outras observam sentadas ou encostam-se às árvores – resignadas à condição de miséria. A tensão acontecera ao início da tarde, com a resistência dos locais à chegada das máquinas demolidoras. Não saíam das casas, um deles gritava: "Ninguém vai sair. Hoje vão ter de matar pessoas."
A operação avançou à terceira tentativa das retroescavadoras, cercadas por um cordão de polícias. Desde o meio-dia até às 16 horas demoliram 50 habitações e nesta terça-feira (dia 15) prosseguem os trabalhos de destruição das restantes (14), confirma à SÁBADO fonte da Câmara de Loures.
As habitações mais recentes (erguidas há um ou dois anos) foram as primeiras a desaparecer desta propriedade privada sem licença de construção. Os visados são aconselhados a dirigirem-se aos serviços sociais na Casa da Cultura, na Quinta do Mocho, em Sacavém, para pedirem apoios para arrendarem casas. Terão ajuda no pagamento da caução e de uma primeira renda – resta saber onde e quais os valores, definidos caso a caso.
Segundo a mesma fonte da Câmara de Loures, está prevista a demolição de todo o bairro de forma faseada. Incluem-se as casas de alvenaria (tijolo e cimento) com mais de 40 anos. Nestes casos, de residentes antigos, a autarquia prevê realojá-los em bairros sociais do município. Não se sabe onde e quando.
Editais fixados 48 horas antes
Na sexta-feira, 11 de julho, a câmara afixou editais ao longo das várias casas do bairro, avisando que os residentes teriam 48 horas para desocupá-las.
Já no comunicado emitido a 24 de julho, a autarquia refere que, de acordo com o levantamento feito pelos serviços municipais, viviam 103 adultos e 58 menores em 56 destas construções. Apurou ainda que 43% dos agregados identificados "têm morada fora do concelho de Loures" e em nove casos "não foi possível recolher a identificação das famílias", lê-se.
No mesmo comunicado, a Câmara de Loures justifica que a intervenção se insere "num esforço contínuo para travar o crescimento de núcleos de autoconstrução ilegal, que se têm vindo a agravar de forma preocupante nos últimos anos, muitas vezes explorando a vulnerabilidade de imigrantes em situação de fragilidade." Manterá "uma política de tolerância zero para situações que violem o ordenamento do território e coloquem em risco a segurança e a saúde públicas."
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