Nova lei dos solos permite "expansão urbana desordenada"
A SÁBADO ouviu o professor catedrático Jorge Malheiros e a ativista Rita Silva sobre a alteração à lei dos solos aprovada em Conselho de Ministros e as opiniões parecem alinhadas: trata-se de um convite à especulação, coloca em risco as àreas rurais e pode originar cidades menos planeadas.
O Governo aprovou umDecreto de Leique altera a lei dos solos no dia 30 de dezembro e o silêncio inicial fazia crer que esta alteração não levantava problemas. Mas passadas as festividades de Natal e Fim de Ano, o debate e as críticas às alterações começaram a fazer-se ouvir.
A versão final do diploma deixou cair o arrendamento acessível como critério para que os municípios possam autorizar a conversão de solos rústicos em solos urbanos, criando apenas a necessidade de 70% da habitação ser utilizadas como habitação pública ou de "valor moderado". Este é um termo introduzido por este Governo e definido como habitações onde "o preço por metro quadrado não exceda o valor da mediana de preço de venda por metro quadrado de habitação para o concelho da localização do imóvel, até ao máximo de 225% do valor da mediana nacional", tendo em conta os valores dos imóveis novos e usados nos últimos três meses. Isto significa que a nível nacional o metro quadrado não pode ultrapassar os 3.906 euros.
O professor catedrático especialista em planeamento do território Jorge Malheiros acredita que com esta alteração à lei estamos a "recuar para períodos com menor regulação" o que significa que "vai haver expansão urbana desordenada abrindo a possibilidade de construir em espaços que não estão ligados à cidade". Isto pode ter várias implicações como "o aumento dos custos da cidade" uma vez que "vai ser preciso estender as redes de transportes públicos, a rede de águas, de energia e todos os serviços".
"Ao permitir que se utilizem solos rústicos para urbanização estamos a permitir que a cidade seja mais fragmentada e que aumentem os custos da gestão da mesma, sacrificando espaços com valor ambiental", defende Jorge Malheiros.
Rita Silva, ativista e membro do movimento Casa Para Viver, alerta que a construção "de forma não organizada vai ter impactos no ambiente, mas também na nossa qualidade de vida a nível social porque não temos uma rede de transportes preparada para isso". "Precisamos de uma cidade densa e compacta com acesso a equipamentos, creches, espaços verdes e transportes."
Um convite à especulação?
O ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, assegurou na passada quinta-feira que que a alteração à lei dos solos "vai baixar o preço das casas" e é "absolutamente anti-especulativa". O governante referiu que "hoje, o acesso às casas está quase impossível para a maioria da classe média", apontando como causas o facto de existirem "poucas casas e as que existem são extremamente caras", por isso, o Governo pretende "aumentar a oferta de terrenos para construção, como forma de baixar o preço das casas".
Este é um incentivo essencialmente à construção privada, mas os construtores ficarão obrigados a vender ou arrendar as habitações tendo em conta os critérios estabelecidos na lei. Jorge Malheiros considera que "a ideia de que com mais habitação os preços vão reduzir não é verdade" e justifica que "a capacidade que os proprietários e os novos atores do mercado imobiliário têm para controlar o setor e não colocar os novos fogos logo para venda é muito grande, pode se pedir uma autorização agora para um terreno que só vai ficar urbanizado daqui a 20 ou 30 anos".
O especialista em geografia humana alerta ainda que este tipo de medidas "pode levar as pessoas a deixarem de utilizar os seus solos rústicos na expectativa de uma valorização e venda para a habitação", aumentando assim a especulação e deixando por utilizar terrenos que podem ter valor ambiental.
Assim sendo a alteração à lei faz com que os "processos especulativos fiquem de porta aberta". Especialmente tendo em conta que "o mercado imobiliário tem-se revelado uma importante fonte de investimento, onde se pode aplicar dinheiro que estaria parado ou investido em coisas com taxas de retorno muito mais pequenas".
Rita Silva também considera que se trata de um "quadro altamente especulativo" que vai permitir ainda mais a "utilização das habitações como um ativo financeiro".
A importância da categorização dos solos
Jorge Malheiros explica que "desde 2014 que o solo é categorizado em urbano e rústico de forma a garantir que o ordenamento do território é harmonizado, garantindo que temos mais qualidade de vida e equilíbrio na utilização dos solos" com o objetivo de "controlar a expansão urbanista" e criar "cidades mais ligadas, com as infraestruturas necessárias à nossa vida, como transportes e equipamentos coletivos de saúde e educação".
Com esta divisão é possível criar um equilíbrio entre "o solo rústico que protege o ambiente e garante áreas para a agricultura que não podem ser sacrificadas em favor da expansão urbana desordenada" e "áreas urbanas densas e compactas onde as zonas industriais e de habitação são pensadas".
Precisamos de mais fogos para habitação?
O diploma ainda vai ser sujeito a apreciação parlamentar, marcada para dia 24 de janeiro, pelo que ainda pode ser chumbado. O PS já referiu que vai propor alterações ao decreto do Governo para garantir que os preços de venda ficam abaixo da mediana e não 25% acima.
Jorge Malheiros reforça que o país tem 700 fogos devolutos e que, "mesmo que sejam em áreas fora dos grandes centros urbanos ou que não estejam aptos para habitação imediata", "existem aqui muitas oportunidades de habitação que poderiam ser um primeiro passo mais rápido e eficaz para aumentar a oferta de habitação".
Além disso, nas áreas que já estão classificadas como solo urbano "ainda temos perímetro para construção". "Na grande maioria dos casos o perímetro urbano é suficiente e não precisamos de estar a transformar solo rústico em solo urbano. Nos municípios em que se verificasse uma real necessidade podia abrir-se uma exceção, mas não desta forma liberalizada", defende.
Rita Silva concorda e defende que "não precisamos neste momento de estar a alargar as áreas de habitação, precisamos de regular o mercado e de parar os incentivos à procura externa, seja através do alojamento local ou do regime de residente não habitual".
A ativista partilha que estuda a área da habitação há vinte anos: "Acho mal estarem a utilizar a crise da habitação como justificação para aprovarem uma lei que vai beneficiar sobretudo os privados e não vai acabar com a crise".
Todo o cenário criado com a alteração desta lei permite que o "lobby se faça sentir". O professor catedrático defende que "o poder local deve ter as suas competências reforçadas, mas é importante que exista uma lógica de regulação supra para evitar o lobby".
Jorge Malheiros considera ainda que "uma alteração com este impacto merecia um maior debate público" em vez de ter sido publicada "numa altura em que a opinião pública estava mais adormecida".
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