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Octávio Lousada Oliveira
Octávio Lousada Oliveira
21 de novembro de 2025 às 07:18

A bitola Ronaldo e nós

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Só com muita candura não se constará que o capitão da selecção portuguesa esteve em Washington noutra qualidade que não a de embaixador dos sauditas.

Desditosos dias estes em que alguém em estreia numa coluna de opinião quase se vê compelido a escrever sobre a última polémica, que só o é porque o desporto predilecto do nosso indigenato é a redução de cada indivíduo à dimensão do mais pequenino de todos. A premissa, quase em jeito de conclusão, vem a propósito desta espécie de uníssono mediático em torno do encontro entre Cristiano Ronaldo e Donald Trump e da entrevista que o primeiro concedeu a Piers Morgan em que – heresia! - confessou gostar do segundo.

A história conta-se de uma penada: a convite do Presidente dos EUA, o melhor jogador de futebol da nossa História e a figura mais global que já ‘produzimos’ jantou na Ala Este da Casa Branca, num repasto em que Elon Musk e Mohammed bin Salman (MbS), príncipe herdeiro do trono da Arábia Saudita, estiveram entre os convivas.

Vai daí que a pátria, que só contraria a indolência para gritar golo (de Ronaldo ou de qualquer outro) ou para contabilizar os zeros das contas bancárias de Ronaldos e quejandos, se levantou em nome dos direitos humanos que são espezinhados diariamente em solo saudita. Melhor ainda: num punhado de horas, mandámos às malvas a conversa da falta de produtividade europeia e fabricámos especialistas em política internacional como se alguém no Ministério da Educação tivesse recuperado o programa Novas Oportunidades.

De cátedra ou de iPhone em riste, os Germanos, Rogeiros e Milhazes confeccionados na Bimby fizeram refinadas análises sobre geopolítica e serviram-nos valiosíssimos manuais de diplomacia. Isto, claro, enquanto procuravam a controvérsia do dia seguinte em reels de Instagram.

Atendo-me ao que importa, aparentemente, Ronaldo não terá integrado a comitiva real de MbS, mas só com muita candura não se constará que o capitão da selecção portuguesa esteve em Washington noutra qualidade que não a de embaixador dos sauditas. Em política – e é disso que se trata -, o que parece é e, tal como os almoços, os jantares também não costumam ser grátis. CR7 era, de facto, o melhor adereço para aquela ocasião.

No entanto, preocupa-me bem mais que o acordo que Trump e MbS alinhavaram possa acentuar a instabilidade no Médio Oriente, confira mais poder militar a um regime torcionário, reajuste os alinhamentos estratégicos no Golfo, fragilize a aliança atlântica e marginalize ainda mais a União Europeia, mas essa talvez seja a parte relevante – e menos sexy - do folhetim que nos foi apresentado.

Em vez disso, por cá, a opção editorial recaiu sobre o moralismo, legítimo, dedicado a alguém que, igualmente de forma legítima, nunca se arvorou em guardião da democracia, do Estado de Direito ou de direitos, liberdades e garantias nos quatro cantos do planeta.

Nestas ocasiões recordo-me sempre de Michal Jordan e de uma escolha que hoje, enfrentando tempos de iconoclastia abrutalhada, o faria cair de todos os pedestais. No ido ano de 1990, o basquetebolista recebeu uma chamada da mãe a avisá-lo de que pretendiam que apoiasse publicamente o candidato democrata na Carolina do Norte ao senado dos EUA, o afroamericano Harvey Grantt. Ainda que o opositor, Jess Helms, fosse um feroz conservador e estivesse nos antípodas do combate ao racismo ou das lutas pelos direitos das pessoas LGBT, a maior estrela da NBA não tomou partido, como nos recordou a série ‘The Last Dance’. Aliás, numa brincadeira de autocarro com os companheiros Scottie Pippen e Horace Grant, Jordan,

que já tinha a sua linha de calçado desportivo, explicou que não se imiscuía em assuntos políticos porque “os republicanos também compra[va]m ténis”.

Renunciou a tomar posição. Ronaldo optou pelo inverso. Ter intervenção política ou cívica é tão aceitável quanto o contrário. A discussão, sejamos francos, prende-se acima de tudo com o lado que se escolhe apoiar. Essa é hipocrisia subjacente a este plot terceiro-mundista. Pior: a exigência com os repastos, amizades e cumplicidades de um jogador da bola não podia contrastar mais com a benevolência que dispensamos àqueles, os nossos responsáveis políticos, com que devíamos ser exigentes. Aos nossos representantes, de todos os partidos, sim, tínhamos o dever de exigir prestação de contas. A eles, e só a eles, deveríamos reivindicar critérios claros em relação às personalidades com que andam abraçados.

José Sócrates deslumbrou-se com Khadafi e Chávez. Pedro Passos Coelho levou demasiado longe a parceria com a China de Xi Jinping. Costa dobrou-se perante João Lourenço para resolver o “irritante” que envolvia Manuel Vicente. E o que dizer de Marcelo Rebelo de Sousa que, em Havana e sem qualquer obrigação protocolar, foi de olhos a reluzentes adular o mui recomendável Fidel Castro?

Aplicássemos a bitola Ronaldo a cada um dos anteriores e a todos os outros que, por economia de tempo e espaço não mencionei, e não sobraria muita gente. Cada um de nós, com as suas idiossincrasias, paixões e pecados, dificilmente resistira à bitola Ronaldo. É essa inexpugnável condição que faz com que a odiemos.

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