Duas lições preliminares da tragédia do Ascensor da Glória
Identificar todas as causas do grave acidente ocorrido no Ascensor da Glória, em Lisboa, na passada semana, é umas das melhores homenagens que podem ser feitas às vítimas.
“A racionalização técnica e económica não substitui a necessidade de valores e responsabilidade" - Max Weber, Economia e Sociedade (1922)
Identificar todas as causas do grave acidente ocorrido no Ascensor da Glória, em Lisboa, na passada semana, é umas das melhores homenagens que podem ser feitas às vítimas, mas não só. Também, a todos os portugueses e demais que visitam o país. Escrevo todas, porque nunca há uma só causa numa tragédia mortal, pois, diversos fatores (culturais, económicos, organizacionais, políticos, ambientais, etc.) contribuem para tal. Dos dados conhecidos através da Nota Informativa do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), não obstante não existirem ainda conclusões técnicas definitivas, é possível desde já sistematizar, em jeito de alerta, duas lições preliminares desta calamidade. De aplicação imediata, sobretudo, aos responsáveis políticos e públicos.
1. Gestão e reformas subordinadas à eficiência económica podem matar
Cuidado com a prevalência ou perseguição obsessiva pela eficiência económica, traduzida aqui por cortes e desinvestimento públicos em pessoas e recursos. Aquilo que se sabe da gestão do Ascensor da Glória reflete isso mesmo: redução maciça de funcionários de manutenção e, consequentemente, externalização desta; contratações de serviços essenciais sob o critério exclusivo do preço mais baixo; faltas ou falhas de inspeção, vistoria e manutenção de sistemas, equipamentos e infraestruturas para redução de custos, são alguns exemplos que contribuíram para o descarrilamento e subsequente colisão das cabinas do ascensor da Glória, na sequência do desligamento do cabo entre cabinas.
A eficiência não deve ser somente económica - deve ser, acima de tudo, pública - nem tampouco deve prevalecer sobre a segurança das pessoas.
Christopher Hood observou que “A busca incessante por eficiência pode corroer exatamente aquilo que torna o governo capaz de resistir a falhas: a redundância e a resiliência” (“The Art of the State”, 1998).
Esta redução decorre num quadro mais amplo de reformas legais e administrativas e fusões de competências e organismos públicos que reduziram a estrutura humana e técnica responsável pela supervisão e fiscalização contínuas, e promoveram vazios legais. Exemplo disso é a falta de definição ou clareza nas competências de regulação e supervisão. O próprio GPIAAF escreve na supracitada nota:
“Na presente data a investigação constatou que o ascensor não está na alçada da supervisão do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., não detendo neste momento a investigação informação fidedigna e confirmada sobre qual é o enquadramento legal do ascensor da Glória nem sobre qual é a entidade pública que tem a obrigação de supervisionar o funcionamento e segurança deste sistema de transporte público, para além da intervenção de uma entidade
acreditada que, por iniciativa da empresa operadora, inspeciona o equipamento aquando das grandes reparações a cada quatro anos.” (p. 5)
As reformas que fragilizam as instituições e reduzem recursos essenciais para a proteção pública, sem assegurar contrapartidas robustas em supervisão e execução, contribuem decisivamente para que ocorram tragédias.
O já citado Christopher Hood analisou que reformas administrativas centradas unicamente na eficiência e poupança imediata podem enfraquecer competências vitais da gestão pública, criando riscos ocultos que, em situações críticas, podem culminar em tragédias (“A Public Management for All Seasons?”, 1991).
O corte de recursos e o foco apenas em resultados económicos sem a devida ponderação dos riscos são um convite à ocorrência de tragédias evitáveis.
Além disso, realidade é que tais movimentos levaram à diminuição de quadros técnicos especializados e ao enfraquecimento de estruturas de controlo interno.
Como observou Bossaert & Demmke (“Main Challenges in the Field of Ethics and Integrity in the EU Member States”, 2003), reformas administrativas centradas na redução de custos corroem gradualmente a memória organizacional, deixando lacunas na competência e na capacidade de prevenir riscos.
2. Cultura de integridade e gestão de risco podem salvar
A integridade e a gestão do risco formam, precisamente, o eixo central da segurança e confiança em equipamentos públicos.
A integridade de um sistema de transporte público assenta no cumprimento escrupuloso das normas técnicas, das operações de manutenção e dos processos de verificação. Não é apenas uma análise técnica, mas um apelo à responsabilidade coletiva e ao rigor, pois, cada falha neste domínio pode acarretar custos humanos, sociais e reputacionais irreparáveis.
A integridade manifesta-se, por exemplo, tanto na durabilidade dos materiais utilizados como na assiduidade da manutenção e inspeção diárias. Quando, no entanto, surge uma falha num elo crítico - neste caso, o ponto de fixação do cabo ao trambolho de uma cabina - todo o ecossistema de confiança é abalado.
A integridade não é, assim, um conceito abstrato: é aquilo que garante que cada transporte público pode ser utilizado sem receio e com respeito pela vida de todos os passageiros.
A gestão do risco, por sua vez, é a capacidade de antecipar e minimizar as diversas ameaças potenciais num sistema complexo.
O acidente do Ascensor da Glória mostra como a gestão do risco requer mais do que rotinas ou protocolos: o plano de manutenção estava em dia e a inspeção visual diária não detetou anomalias, mas a falha deu-se num ponto não acessível sem desmontagem e, sobretudo, expôs a inexistência de redundância na travagem das cabinas em caso de perda da ligação pelo cabo. Isto reforça que a análise de risco deve ser sistemática e evolutiva, atenta a incongruências entre o previsto e o real, e aberta à aprendizagem após incidentes, grandes ou pequenos.
Uma gestão passiva do risco é, na prática, um risco por si só.
O relatório da OCDE Government at a Glance (2025) sublinha que os governantes e gestores que melhor enfrentam crises são aquelas que fazem do risco uma disciplina diária, e não uma exceção.
Prevenir exige humildade técnica e a capacidade de antecipar cenários improváveis, conduzindo a inspeções robustas e intrusivas, eficácia e renovação de modelos de redundância e constante revisão dos planos de emergência e formação respetivos. Não há verdadeiro ato de prevenção sem assumir que todo o sistema pode falhar.
Além disso, a inexistência de sistemas de segurança redundantes, como travagens independentes, demonstra negligência na gestão proativa do risco e na previsão de cenários críticos. Mais, segundo uma notícia do Público, parece que «entre os funcionários da Carris que lidavam com o elevador da Glória havia a ideia de que este não funcionava na perfeição. Pequenos indícios, só perceptíveis por quem conhece o material, indiciavam que havia problemas de sobrecarga. Uma desses sintomas é que as cabinas baloiçavam mais do que antigamente e havia como que um “chocalhar” no funcionamento do elevador».
Ora, a ser verdade, constitui uma gravíssima notícia sobre a empresa pública no âmbito do seu sistema de integridade, denotando uma grave fragilidade deste sistema, pois, desde logo, revela a falta de mecanismos eficazes de comunicação interna, de canais de denúncia e proteção de denunciantes.
O acidente expôs, assim, as insuficiências de uma cultura organizacional, e não só, de integridade e gestão de risco que valorize o interesse público e o compromisso com a segurança.
A integridade é o denominador comum da fiabilidade técnica e da confiança social, enquanto a gestão do risco é o método que assegura, dia após dia, que esta integridade não se transforma em complacência ou negligência.
Em suma, integridade e gestão do risco não são meras palavras: são obrigações éticas, técnicas e sociais, sem as quais a segurança e progresso se tornam frágeis e insustentáveis.
Conclusão
O acidente no Ascensor da Glória é um alerta severo para todos os que gerem, operam e regulam o interesse público. A segurança das pessoas e bens deve ser o princípio orientador absoluto, apoiada por gestão e investimentos públicos adequados, reformas responsivas e cultura de integridade e gestão de risco.
As duas lições gerais preliminares que emergem desta tragédia não são apenas técnicas, são profundamente humanas.
Proteger vidas exige prioritizar as pessoas, capacitar aqueles que nela trabalham, preservar a memória institucional, o conhecimento e a capacidade dos agentes públicos, e privados.
Prevenir acidentes em equipamentos públicos é, assim, expressão do respeito pela vida e pelo bem-estar coletivo, valorizando cada experiência, cada vida salva, e evocando o verdadeiro espírito do serviço público e de segurança e bem-estar social.
Duas lições preliminares da tragédia do Ascensor da Glória
Identificar todas as causas do grave acidente ocorrido no Ascensor da Glória, em Lisboa, na passada semana, é umas das melhores homenagens que podem ser feitas às vítimas.
Frank Caprio praticava uma justiça humanista, prática, que partia da complexa realidade. Por isso, era conhecido ora como "o juiz mais gentil do mundo", ora como “o melhor juiz do mundo”.
O conceito de burocracia tem vários sentidos. Uns mais populares, outros científicos. Certa é a sua conotação negativa. Tal é a sua conotação negativa generalizada, como se tratasse de um lugar infernal na Terra, que não é com certeza por acaso a escolha política da palavra "guerra" pelo Governo para a combater.
Depois de ler a "A Máquina do Estado", de Joseph Heath, nunca mais vais focar a sua atenção apenas em políticos e comentadores, resultados e promessas eleitorais e políticas e decisões públicas.
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Só espero que, tal como aconteceu em 2019, os portugueses e as portuguesas punam severamente aqueles e aquelas que, cinicamente e com um total desrespeito pela dor e o sofrimento dos sobreviventes e dos familiares dos falecidos, assumem essas atitudes indignas e repulsivas.
Identificar todas as causas do grave acidente ocorrido no Ascensor da Glória, em Lisboa, na passada semana, é umas das melhores homenagens que podem ser feitas às vítimas.
O poder instituído terá ainda os seus devotos, mas o desastre na Calçada da Glória, terá reforçado, entretanto, a subversiva convicção de que, entre nós, lisboetas, demais compatriotas ou estrangeiros não têm nem como, nem em quem se fiar