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Miguel Herdade
Miguel Herdade Gestor do setor social
21 de maio de 2024 às 07:00

O Euro corno

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Edição de 5 a 11 de agosto

A aristocracia política e tecnocrata de Bruxelas é um problema numa Europa alargada e desigual. Mas ter uma União pesada, chata e moderada pode mesmo ser a melhor forma de abrir as portas do continente a quem procura uma vida melhor.

Quem já teve oportunidade de deambular por dentro do Parlamento Europeu em Bruxelas (não do parlamento de faz-de-conta em Estrasburgo), sente que o ar está palacianamente rarefeito com salamaleque, jargão e linguagem própria. E tem muita gente:

Numa generalização grosseiramente injusta, dividiria a corte de Eurocratas de Bruxelas em três tipos. Em primeiro lugar, há um número brutal de pessoas fascinantes, apaixonadas e que são brilhantes no que fazem, tanto do ponto de vista político como técnico. Na segunda categoria, mas em igual quantidade, há um batalhão de acinzentados, mangas-de-alpaca e carniceiros burocratas. Por fim, há umas rémoras satélite que, como se diz no futebol, orbitam "na mama" para um projeto ou financiamento de qualquer espécie.

Mas é talvez quando se sai dos corredores institucionais que vemos a outra camada do problema. Da última vez que me convidaram para um painel no Parlamento Europeu, chegado à hora de fim dos trabalhos, aceitei o convite de um grupo para ir a um bar ironicamente chamado "Le Coin du Diable". Dos 10 simpáticos eurocratas de várias nacionalidades que me acompanhavam, sete estudaram no Collège d´Europe, um em Harvard, e dois em Science Po, em França.

Gente que vem literalmente de todos os cantos da europa, com toda a riqueza cultural e capital de diversidade do velho continente, acaba a ser filtrada duas vezes: primeiro no país de origem, como em Portugal, onde a frequência do ensino superior está muito dependente dos rendimentos do agregado familiar; e posteriormente por estas instituições de ensino internacionais ao nível de mestrado, ainda mais inacessíveis ao comum dos mortais. No Collège d´Europe o preço do mestrado ronda os 29 mil Euros. A importância desta universidade é tão grande que o governo do Partido Socialista – fina ironia – investiu 208 mil Euros em"Bolsas Mário Soares" para portugueses frequentarem o tal mestrado de luxo, para "colmatar a sub-representação de portugueses na UE".

Os que passam este duplo filtro, são depois processados e englobados na bolha de Bruxelas. De acordo com umaanálise do POLITICOfeita em 2021, 100% dos oficiais sénior da UE tinham um curso superior, e muitos com doutoramento e mestrado. Quase um terço dos deputados e funcionários europeus estudaram direito e são, na larga maioria, homens.

O problema desta Euro-bolha é que cria uma aristocracia eurocrata que torna a União desfasada dos seus cidadãos. Numa altura de crescente desigualdade e alarmantes níveis de pobreza em vários estados-membros, muito mais haveria a fazer para levantar barreiras a quem nasce em meios mais desfavorecidos, e garantir uma maior diversidade de contexto socioeconómico dentro dos funcionários da União.

Isto já para não falar do mais evidente: numa cidade com enorme diversidade como Bruxelas, salta à vista a falta de riqueza étnica nos órgãos eleitos e funcionários das instituições. À data as últimas eleições, 1 em cada 10 europeus pertencia a uma minoria étnica*, mas eram representados por apenas 5% dos eurodeputados, valor que baixou para 4% com a saída do Reino Unido. Nessas eleições, foram eleitostrês deputados de etnia cigana, a maior, e mais antiga, minoria étnica da Europa, com cerca de 6 milhões de habitantes. Recentemente, fruto da eleição de Marisa Matias para a Assembleia da República, Portugal até teve a sua primeira eurodeputada afrodescendente, Anabela Rodrigues, mas que já foi preterida a favor de Catarina Martins como cabeça de lista do Bloco.

Numa Europa que, fiel aos seus próprios valores, se quer cada vez mais rica e diversa, do ponto de vista cultural, dos costumes, mas também das etnias e dos povos, é essencial desfazermos estes elitismos aristocráticos e pouco democráticos dentro das instituições da União.

Até porque as migrações e alargamentos serão um tema essencial destas eleições. A Europa deve, e bem, abrir as portas a tanta gente que sonha cá viver. Não só porque precisamos de imigrantes, mas, sobretudo e em primeiro lugar, porque qualquer verdadeiro europeísta (ou Euro corno, como eu) acredita que a Europa democrática, do estado de direito, de paz, e de liberdade não pode ser recusada com base em circunstâncias que ninguém escolhe: como o sítio onde se nasceu.

É evidente que esta abertura, de proporções históricas, não pode acontecer de um dia para o outro, sob pena de pôr em risco a sempre frágil União e os eternamente vulneráveis direitos fundamentais que queremos universalizar. Tem desafios colossais e tem de ser planeado, discutido, preparado, amadurecido com tempo – e claro começar por dentro das instituições.

É justamente por precisarmos deste tempo, que pode ser uma vantagem a Europa ser "uma seca". É chata, pesada, complicada, demorada, longínqua, hermética. Quem tenha tido pachorra para acompanhar os debates das europeias nas televisões, viu, como assinalouHenrique Burnay no Expresso, uma boa demonstração do que é a Europa a funcionar: negociações, compromissos, impasses técnicos, mas acima de tudo uma discussão moderada, por oposição à miséria polarizada e jagunça que assistimos no nosso parlamento.

A União Europeia pode ser uma seca para os seus cidadãos, mas é um sonho para quem cá ainda não vive.

*Jane Oremosu e Dr Maggie Semple OBE, no seu My Little Black Book (2024), preferem o termo "maioria global" em vez de minoria étnica. E eu também.

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