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Miguel Herdade
Miguel Herdade Gestor do setor social
20 de agosto de 2024 às 07:00

Morte às férias de verão

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Edição de 2 a 8 de setembro

As escolas fecham demasiado tempo no verão e prejudicam as crianças, sobretudo as mais pequenas e as mais pobres. Não queremos ter esta conversa porque temos dificuldade em calçar os sapatos (ou melhor: os chinelos) dos outros.

Morte às férias de verão. Estou a brincar: as férias de verão são importantes. Sobretudo para quem tem possibilidade de as aproveitar bem, claro, como foi o meu caso.  

Ao longo da minha vida as férias de verão foram um verdadeiro privilégio. O verão era uma altura para aprender coisas novas, aproveitar a companhia dos avós, brincar, apanhar pinhões em terra e conquilhas no mar, sempre com aquelas sandálias de plástico transparentes do "peixe-aranha" nos pés. Mais tarde, os pés cresceram, e passavam o verão todo em cima de umas chinelas brasileiras excelentes da marca "Havaianas". As férias davam-me finalmente a possibilidade de fazer surf todos os dias (ainda que as ondas sejam muito melhores e maiores no inverno). Foram as primeiras saídas à noite, muitas horas com os meus melhores amigos, a minha primeira namorada, bebedeiras, festivais de verão.  

Quando acabei a escola e entrei na idade adulta tudo começou a piorar: o meu pé-de-chinelo foi substituído por umas alpercatas de pano que não eram à prova de água e acumulavam areia, chata, sempre colada ao tecido, que nunca saía dos pés. As férias de verão passaram a ser uma semana, no máximo duas. O trabalho e as dificuldades graves de saúde mental que marcaram essa altura da minha vida cortavam-me os movimentos. O verão era literalmente um pequeno raio de sol na minha vida, e a única altura em que o meu corpo e a minha cabeça conseguiam usar algum bronzeado para disfarçar o sofrimento que as olheiras carregadas e escuras tornavam evidente. 

A vida foi melhorando, inventaram coisas melhores que as alpercatas de pano.  

Tal como muitos emigrantes voltei ontem para casa, em Londres. Agora vivo numa ilha cada vez mais isolada do norte da Europa onde quase não há verão. Tive a sorte de tirar alguns dias de férias noutras ilhas mais a sul, na Grécia, a que acrescentei mais uma semana de luxo com sol e surf em Portugal. Neste verão, além de muitas "Birkenstock" (coisa que eu teria abominado na minha juventude), vi uma amiga, mãe de duas filhas, a usar novamente umas sandálias do peixe-aranha. Um regresso à alegria de infância. Viva o verão. 

Mas a verdade é que as férias de verão têm um lado negro e injusto, que gostamos muito pouco de discutir. É que elas são uma enorme fonte de injustiça e desigualdade porque prejudicam significativamente as aprendizagens, sobretudo para as crianças mais pobres. 

Há mais de 100 anos que este tema é estudado e é bastante consensual, apesar de a parte técnica da discussão se ter reacendido nos últimos anos, sobretudo durante a pandemia. A ideia é que as crianças aprendem menos durante as férias do que quando estão na escola (evidentemente) e podem até esquecer-se dos conhecimentos adquiridos ao longo do ano letivo. O impacto é grande: um estudo recente com dados da Nova Zelândia, resumido em português pela Iniciativa Educação, documenta que até metade do progresso adquirido ao longo do ano letivo foi perdido durante as férias de verão. Além disso, a literatura mostra que os prejuízos são maiores nas crianças mais pobres, não só do ponto de vista académico, como de saúde mental. Temos, assim, mais uma fonte de desigualdade que reflete o contexto social e familiar destas crianças, bem como os estímulos e recursos que têm à sua disposição durante o período estival.  

Isto também acontece, como é óbvio, porque muitas crianças não têm acesso às férias de verão de sonho que eu descrevi no início deste texto. De acordo com o Eurostat, quase 40% dos agregados familiares portugueses não têm dinheiro para pagar uma semana de férias fora de casa. 

Além disso, Portugal é um dos países com maior período de férias de verão de toda a Europa: de acordo com um relatório da Comissão Europeia, são 12 semanas de férias de verão, o dobro do que se pratica em França ou em Inglaterra, onde as férias duram apenas 6 semanas. 

É importante notar que não estou a defender que deixe de haver férias de verão ou sequer que os alunos tenham menos dias de férias. A solução mais simples, adotada em tantos países, passa por ter mais férias escolares, mas distribuídas ao longo do ano letivo em períodos mais curtos, precisamente para evitar que as crianças saiam prejudicadas por férias muito compridas. Porque não começar as aulas logo no início de Setembro, em vez de esperar pela segunda quinzena, e acrescentar uma pausa a meio do primeiro período? E já nem estou a pensar no facto de que as aulas, na prática, começam muitas vezes já em Outubro ou mais tarde com o caos da colocação (e falta) de professores. Seria, provavelmente, uma forma relativamente barata de conduzir a ganhos substanciais na diminuição da desigualdade no sistema de ensino, sem trazer prejuízo a rigorosamente ninguém. 

O tema é muito impopular e nunca teve uma discussão séria no nosso país. Alguns professores também são muitas vezes frontalmente contra o assunto, uma vez que de facto é difícil dar aulas em dias de maior calor (apesar de haver sistemas de ensino bem mais quentes do que o nosso). Dar mais umas semanas de aulas no verão devia, isso sim, ser um bom argumento para se investir no degradante parque escolar nacional, onde não se vê um aquecimento, ar condicionado ou isolamento térmico capaz de dar dignidade aos alunos e professores na sua importante missão. 

O mais estranho é o silêncio dos pais quanto a este tema. Mas a razão é evidente: os pais que têm poder e influência para chamar a atenção para estes problemas são os mesmos que podem proporcionar aos seus filhos férias de alto gabarito, como as minhas. Talvez seja altura de a sociedade civil olhar para o lado e pôr-se nos sapatos (ou nos chinelos) dos outros. 

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