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Miguel Herdade
Miguel Herdade Gestor do setor social
19 de novembro de 2024 às 07:00

Os domingueiros

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Edição de 5 a 11 de agosto

As greves têm impacto nas aprendizagens dos alunos e prejudicam mais os alunos mais vulneráveis.

Mais um fim-de-semana que passou, e mais um dia de descanso estragado pelo maior flagelo que nos pode ocorrer no dia do Senhor: os famosos "domingueiros".  

Desta vez a queixa veio do meu querido amigo Luís, que é possivelmente o lisboeta que mais tempo passa na Praia Grande, em Sintra. Reclama que os domingueiros lhe atrasam o acesso ao descanso semanal, formando uma lenta barreira de trânsito que entope a belíssima estrada que liga Cascais a Almoçageme. 

Não deixa de ser irónico que estas pessoas que, alegadamente, arruínam os Domingos fiquem com o nome desse dia de descanso tão importante. No limite, os domingueiros não deviam ser dignos desse nome. Deviam ser "anti-domingueiros" ou "desdomingueiros" quiçá, uma vez que estragam o dia que deviam precisamente celebrar. Enfim. 

A conversa acabou por seguir outro rumo e degenerou numa conspiração sobre como, este ano, os ditos domingueiros estão piores. Outro amigo dizia, em tom de brincadeira, que a culpa era das incessantes greves à sexta-feira ou em vésperas de feriado que assolam as escolas em todo o país. Será verdade? 

Brincadeiras à parte, quem vos escreve não tem nada contra os domingueiros. Mas a valorização dos professores e demais funcionários escolares é um assunto sobre o qual dediquei os últimos anos da minha vida profissional.  

A razão pela qual os professores são tão importantes é simples: temos décadas de investigação científica que demonstram que estes são, de longe, a coisa mais importante nas nossas escolas para dar melhores conhecimentos aos alunos e, com isso, ajudá-los a ter melhores empregos, melhor produtividade e ordenados mais altos quando são adultos.  

Mas as escolas não são feitas apenas de professores, e o seu trabalho seria ainda mais difícil de fazer sem o papel fundamental de todos os funcionários escolares, por quem também expresso o meu apoio inequívoco na luta por melhores condições laborais e, com isso, uma melhor escola pública para todos. 

Contudo, como em tudo na vida, as greves têm um custo. O líder do sindicato que tem organizado estas greves disse que "os alunos não são prejudicados de forma irreversível por greves pontuais". Mas o problema é que as greves não têm sido pontuais: se não estou em erro, desde o início do ano lectivo tivemos apenas duas semanas sem greves. A evidência empírica em vários países aponta duas coisas: as greves duradouras têm um impacto de longo prazo nas aprendizagens dos alunos, e prejudicam mais os alunos mais vulneráveis. Num texto para o Economics Observatory, os economistas Per Engzell e Erik Liss fizeram um resumo sobre o efeito das greves nos alunos: de acordo com os autores, as greves podem mesmo ter um impacto duradouro, com efeitos de muito longo prazo que se refletem, por exemplo, nos salários que estes alunos recebem em idade adulta.

Pior ainda, é que estas greves acontecem em cima de muitos anos lectivos seguidos com o sistema de ensino em cacos. Basta pensar que uma criança que esteja agora no 6.º ano nunca teve um ano normal de escola na sua vida. Desde que entrou para a escola o seu percurso é marcado, sucessivamente, pela pandemia, confinamentos, falta de professores e greves.

Não quero com isto dizer que as greves não devam existir, pelo contrário. Mas gostava que os dirigentes sindicais fossem sérios em relação ao seu impacto e na forma como as organizam.  

Aliás, no meio desta história toda, um dos mistérios por resolver é saber por que é que as ditas greves acontecem sempre coladas a um fim-de-semana ou feriado. Pelo que sei, muitas vezes as greves são à sexta-feira para permitir aos grevistas deslocarem-se para as manifestações que normalmente têm lugar ao Sábado. Mas essas manifestações não têm acontecido com tanta frequência quanto as greves quase semanais que fustigam este ano lectivo.  

Têm assim razão os meus amigos conspiradores quando dizem que as greves são marcadas para os grevistas aproveitarem melhor os fins-de-semana, engrossando assim as hordas de domingueiros? Não sei. 

Mas sei que quando nos queixamos de estar presos no trânsito ao Domingo, muitas vezes esquecemo-nos do essencial: "Nós não estamos no trânsito. Nós somos parte do trânsito".  

Será que não estamos todos a falhar? Como país, não conseguimos organizar-nos para resolver o problema que origina estas greves? 

Eu, você, os políticos, o governo, a oposição, as empresas, os municípios, os sindicatos e famílias. São já cinco anos letivos de fiasco com uma pandemia, falta de professores, greves. Como é que coletivamente deixámos isto acontecer? Passaram duas ou três eleições e nem falámos sobre isto. Será que temos feito alguma coisa para resolver estes problemas, ou andamos aqui a engonhar? Será que afinal somos todos domingueiros 

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