Sábado – Pense por si

Marta Mucznik
Marta Mucznik Analista de Assuntos Europeus no International Crisis Group
31 de maio de 2024 às 11:34

O Crescente Desafio do Consenso Europeu

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Edição de 5 a 11 de agosto

Que Europa teremos se Le Pen ganhar as eleições presidenciais em França em 2027? E se a Le Pen, Viktor Orbán e Giorgia Meloni se juntarem outros lideres com visões semelhantes sobre o futuro da UE?

Com o aproximar das eleições europeias e os olhos postos nos resultados dos partidos de extrema-direita e direita radical, cresce a preocupação com a manutenção do amplo consenso europeu em torno das grandes prioridades da União Europeia em tempos de guerra no continente. Qual será a margem de manobra da maioria centrista para negociar os vários dossiers?

A atual comoção mediática em torno da abertura de Ursula von der Leyen para negociar com o partido ECR (Reformistas e Conservadores Europeus), da designada "direita-radical", no sentido de garantir o apoio parlamentar para a sua nomeação, já nos dá uma ideia de que o tema da cerca sanitária pode ganhar força no próximo mandato.

Quanto à política externa e de defesa europeia, que o International Crisis Group acompanha aqui em Bruxelas, nada indica que o amplo consenso em torno dessas questões – pró-Ucrânia, favorável ao alargamento e ao investimento na defesa – venha a ser substancialmente abalado no Parlamento Europeu.

Mas a importância destas eleições ultrapassa em larga escala as paredes do Parlamento Europeu. Como avisa a publicação mais recente do Crisis Group, EU Watch List, elas fazem parte de uma tendência crescente em que os partidos de extrema-direita participam de cada vez mais governos nacionais, ganhando assim um lugar à mesa do Conselho Europeu.

Se, no Parlamento Europeu, a influência sobre estas e outras questões de política externa ainda é diminuta, no Conselho, esses governos têm poder de veto – podendo paralisar discussões durante semanas ou meses a fio, ou até mesmo inviabilizar decisões importantes, como, por exemplo, o envio de armas à Ucrânia ou o avanço no processo de negociações de adesão com a Ucrânia e a Moldávia.

Ainda esta semana, o Primeiro-Ministro húngaro, Viktor Orbán, ameaçou mais uma vez bloquear uma decisão importante no âmbito do apoio à Ucrânia. Isto tem sido prática recorrente de Orbán no Conselho desde a invasão da Rússia à Ucrânia, atrasando sistematicamente um consenso que deveria ser célere em contexto de guerra na Europa. Viktor Orbán usa o seu direito de veto como moeda de troca para extrair concessões de Bruxelas face ao descongelamento de fundos no que diz respeito ao retrocesso democrático. Acenou o veto a propósito da aprovação dos sucessivos pacotes de sanções contra a Rússia, de pacotes de apoio militar à Ucrânia e da abertura de negociações de adesão à Ucrânia e à Moldávia. Até agora, os líderes europeus têm conseguido sempre contornar a suas ameaças de veto de Orbán, por vezes cedendo a exigências húngaras, outras recorrendo a hábeis manobras diplomáticas. No entanto esta estratégia pode deixar de funcionar à medida que a extrema-direita e a sua representação aumentam à mesa das negociações. O que acontecerá quando Viktor Orbán deixar de ser o único a ameacar o direito de veto nestas questoes? Que Europa teremos se Le Pen ganhar as eleições presidenciais em França em 2027? E se a Le Pen, Viktor Orbán e Giorgia Meloni se juntarem outros lideres com visões semelhantes sobre o futuro da UE?

Sabemos que é necessário entender as muitas diferenças que coexistem na extrema-direita e na direita radical, e resistir a vê-las como um bloco coeso. A Primeira-Ministra italiana, Giorgia Meloni, e o seu homólogo checo conquistaram fama de moderados, pragmáticos e sensatos na manutenção do consenso europeu a favor da imposição de sanções contra a Rússia e de apoio à Ucrânia. Giorgia Meloni chegou até a interceder junto de Orbán, em dezembro passado, para este concordar com um pacote de ajuda para a Ucrânia. Mas esse pragmatismo e bom senso permanecem enquanto a balança e a "pressão dos pares" penderem para o centro – algo que um estudo recente do Carnegie Europe aponta como "o efeito de contágio e socialização", ou seja, a famosa "peer pressure". Tudo isso pode eventualmente mudar à medida que o espectro político europeu vira à direita.

E, apesar das devidas diferenças, sobretudo no que toca à abordagem ao Kremlin e à Ucrânia e ao investimento na defesa europeia – que são significativas, há traços comuns na sua visão para a Europa.

Estes partidos da extrema-direita, de uma forma geral, têm um foco mais forte em questões internas e priorizam uma política externa mais transacional, rejeitando qualquer impulso de maior integração na área de política externa. Caso essa visão ganhe terreno, terá impactos no consenso generalizado de que a União Europeia deve assumir um papel geopolítico mais assertivo no mundo, nomeadamente na resposta às guerras e no contexto de crescente rivalidade entre grandes potências.

A Europa de Le Pen, André Ventura, Geert Wilders ou Viktor Orbán defende claramente um caminho diferente do preconizado pelo motor franco-alemão de Macron e Scholz, que, ainda esta semana, se preparam para definir em conjunto as grandes linhas estratégicas para o próximo mandato. Marine Le Pen, líder do Rassemblement National (RN), quer substituir a UE por uma nova aliança mais "flexível" de "nações livres e soberanas", onde cada membro escolheria quais regras aplicar, incluindo as relacionadas ao Estado de Direito. Tal provavelmente envolve transferir poderes de volta aos governos nacionais e interromper o processo de integração europeia. André Ventura também defende a "Europa das nações soberanas" e repudia o modelo federal. Viktor Orbán defende que "temos de ocupar Bruxelas, afastar os burocratas e assumir as rédeas da situação". Mesmo o ECR fala da "devolução de poder" subjacente à sua visão para uma "Europa reformada". Estes partidos não querem necessariamente sair da UE. Eles querem mudá-la por dentro.

Assistimos assim, no espaço público, quer europeu, quer nacional, a duas visões sobre o futuro da Europa que vão cada vez mais competir entre si. Uma completamente comprometida com a direção para a qual caminha a UE, de uma Europa geopolítica capaz de dar uma resposta coordenada às múltiplas crises que enfrenta; outra que defende um retrocesso do caminho percorrido até agora, de uma Europa de estados-nação mais virados para dentro, que rejeita a supranacionalidade e que quer resgatar o poder entregue a Bruxelas. Uma assente no princípio de "um por todos e todos por um", outra mais virada para a Europa do "cada um por si" (que poderá cooperar em função de interesses estratégicos nacionais).

Esta última visão ainda é minoritária no espectro político europeu. Resta saber até quando.

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