Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
10 de março de 2025 às 07:00

Justiça a Dois Tempos

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Edição de 2 a 8 de setembro

Quatro anos de namoro durante a faculdade, planos de abrir um escritório juntos, um anel de noivado antigo que pertencera à avó dele. E depois, o concurso para a magistratura que ela decidiu fazer, a proposta em Londres que ele aceitou.

O Tribunal Judicial de Guimarães, instalado no antigo Convento de Santa Clara, mantinha um diálogo silencioso entre o passado e o presente. Os arcos do claustro, pacientemente restaurados, testemunhavam agora os passos apressados de advogados e magistrados, em vez dos contemplativos passeios das freiras clarissas que ali tinham vivido durante séculos. 

A Dra. Helena Ribeiro, aos quarenta e cinco anos, ainda sentia um frisson ao atravessar aquele claustro a caminho da sua sala. Tinha sido nomeada juíza titular da vara cível há quase três anos, após uma carreira exemplar que a trouxera de Lisboa de volta às origens minhotas. O regresso a Guimarães não fora planeado, mas quando a oportunidade surgiu, algo nela – talvez o chamamento das raízes, talvez a nostalgia de uma juventude que teimava em permanecer viva na memória – empurrou-a para aceitar sem hesitações. 

Naquela manhã de outubro, as folhas douradas cobriam o chão do claustro como um tapete precioso. Helena organizava os processos para as audiências do dia quando a Dr.ª Luísa, escrivã de direito e sua confidente no tribunal, entrou apressadamente. 

"Doutora, chegou o processo da Quinta da Torre. Foi distribuído para a sua secção." 

Helena pegou no processo com curiosidade. A Quinta da Torre era uma propriedade histórica nos arredores de Guimarães, uma casa senhorial do século XVII com importância patrimonial significativa. Há meses que os jornais locais falavam do conflito entre os proprietários atuais, que queriam construir um complexo turístico de luxo, e a Associação de Defesa do Património que tentava impedir a construção. 

"Quem representa a Associação?" perguntou Helena, folheando o processo. 

Luísa hesitou por um momento. "Dr. Miguel Sampaio." 

Helena sentiu um solavanco que não tinha nada a ver com justiça. Miguel Sampaio. Vinte anos evaporaram-se num instante, e de repente estava de volta à Faculdade de Direito de Coimbra, jovem, apaixonada e cheia de sonhos de mudar o mundo através das leis. 

"A audiência preliminar está marcada para a próxima semana," continuou Luísa, olhando-a com curiosidade. "Conhece o advogado?" 

"Conheci," respondeu Helena, recuperando a compostura. "Há muito tempo." 

O que não disse foi que Miguel tinha sido o seu primeiro amor verdadeiro. Quatro anos de namoro durante a faculdade, planos de abrir um escritório juntos, um anel de noivado antigo que pertencera à avó dele. E depois, o concurso para a magistratura que ela decidiu fazer, a proposta em Londres que ele aceitou. Duas ambições que tomaram rumos incompatíveis. Uma despedida no aeroporto de Lisboa que ela ainda conseguia sentir como uma ferida mal cicatrizada. 

Durante a semana que se seguiu, Helena estudou o processo meticulosamente, como fazia com todos. Mas desta vez, cada documento parecia conter ecos de conversas antigas, de debates acalorados sobre a preservação do património versus desenvolvimento económico. Miguel sempre fora um defensor apaixonado da conservação, enquanto ela tendia a valorizar o progresso. "O património é vivo, Helena," dizia ele. "Tem de ser vivido, não embalsamado." 

Na manhã da audiência, Helena vestiu o seu melhor fato – um conjunto azul-escuro sóbrio – e prendeu os cabelos castanhos, agora com alguns fios prateados, num coque perfeito. No espelho, viu o reflexo de uma mulher confiante, respeitada na sua profissão. E tentou ignorar o nervosismo adolescente que lhe revolvia o estômago. 

Quando entrou na sala de audiências, viu-o imediatamente. Miguel Sampaio estava mais velho, claro – as têmporas grisalhas, algumas rugas de expressão em torno dos olhos – mas o sorriso continuava o mesmo, aquele meio sorriso que parecia sempre conter um segredo. Vestia um fato cinzento bem cortado e os mesmos óculos de armação fina que sempre usara. Os anos em Londres, pelo visto, tinham-lhe refinado o estilo. 

Os seus olhos encontraram-se por um breve momento antes que a formalidade do tribunal tomasse conta da situação. 

"Bom dia a todos," começou Helena, com a voz mais neutra que conseguiu reunir. "Processo nº 2024/1276.5TBGMR. Ação ordinária movida pela Associação de Defesa do Património de Guimarães contra Luxtower Investimentos, Lda." 

A audiência decorreu com a tensão própria de um caso controverso. De um lado, o advogado da Luxtower, Dr. Cardoso, um litigante experiente e agressivo, argumentava que o projeto respeitava todos os requisitos legais, tinha aprovação da Câmara Municipal e traria desenvolvimento económico a uma zona estagnada. Do outro, Miguel apresentava com elegância os argumentos da Associação: a Quinta estava classificada como imóvel de interesse municipal, o projeto alteraria irremediavelmente a sua traça original, e existiam documentos históricos na propriedade que ainda não tinham sido devidamente catalogados. 

Helena observava o duelo verbal com a atenção clínica que a profissão exigia, mas não podia deixar de notar como Miguel mantinha a mesma paixão de argumentação que conhecera duas décadas antes. A forma como inclinava ligeiramente a cabeça quando escutava um argumento contrário, o gesto de ajustar os óculos quando se preparava para contra-argumentar. 

"A Associação requer uma providência cautelar imediata," concluiu Miguel, "para suspender qualquer intervenção na propriedade até à conclusão de uma avaliação patrimonial independente." 

"Meritíssima," interveio o Dr. Cardoso, "isso causaria prejuízos irreparáveis ao meu constituinte. Já foram investidos milhões neste projeto." 

Helena ponderou cuidadosamente. "Este tribunal considera que existem questões preliminares que merecem clarificação. Antes de decidir sobre a providência cautelar, determino a realização de uma inspeção judicial ao local, com a presença dos peritos indicados por ambas as partes. A diligência terá lugar na próxima segunda-feira, às 10 horas." 

Após a audiência, Helena regressou ao seu gabinete, tentando processar o turbilhão de emoções que a invadiam. Estava a concentrar-se num parecer quando ouviu uma batida suave na porta. 

"Dr. Miguel Sampaio pede para falar consigo, Meritíssima," anunciou Luísa. "Diz que é sobre o processo." 

Helena hesitou. A ética profissional permitia um encontro com uma das partes, desde que a outra fosse informada. Mas seria prudente? 

"Mande-o entrar," decidiu finalmente. "E informe o Dr. Cardoso que estou a receber o advogado da parte contrária, por solicitação dele." 

Miguel entrou com aquela mesma mistura de confiança e humildade que sempre o caracterizara. Permaneceu em pé, respeitando o protocolo. 

"Meritíssima," começou formalmente, "agradeço a disponibilidade. Queria apenas entregar pessoalmente este documento que chegou após a audiência. Uma avaliação preliminar do ICOMOS sobre o valor patrimonial da Quinta." 

Helena aceitou o documento, tentando ignorar o leve tremor nas mãos quando os seus dedos quase se tocaram. 

"Poderia ter entregue na secretaria," observou ela. 

"Poderia," concordou ele, com um sorriso que dizia muito mais. "Mas confesso que tinha curiosidade em falar consigo... fora do contexto da sala de audiências." 

"Dr. Sampaio, sabe que existem protocolos a respeitar. Este é um caso sob minha jurisdição." 

"Compreendo perfeitamente," respondeu ele. "Mas depois de vinte anos, pensei que talvez pudéssemos, pelo menos, dizer olá adequadamente." 

Helena permitiu-se um pequeno sorriso. "Olá, Miguel." 

"Olá, Helena," retribuiu ele. "Estás... estás com ótimo aspeto." 

Um silêncio carregado de passado preencheu o gabinete. Vinte anos de não-ditos pairavam entre eles. 

"Voltaste para Guimarães há quanto tempo?" perguntou ela finalmente. 

"Dois anos. Depois de Londres, fui para Bruxelas. Trabalhei na Comissão Europeia, departamento jurídico para questões de património cultural. Quando a minha mãe adoeceu, decidi voltar." 

"Lamento pela tua mãe." 

"Ela faleceu há seis meses." Miguel hesitou. "Vi a tua nomeação para este tribunal no Diário da República. Fiquei... surpreendido." 

"Também foi uma surpresa para mim," admitiu ela. "Depois de tantos anos em Lisboa, não esperava voltar. Mas quando a vaga surgiu..." 

"O Minho puxa pelos seus," concluiu ele, com aquele sorriso que ela conhecia tão bem. 

Outro silêncio, mais confortável desta vez. 

"Bem," disse Miguel finalmente, "não vou tomar mais do teu tempo. Apenas queria dizer que, independentemente do resultado deste processo, é bom ver-te novamente." 

Na segunda-feira seguinte, a inspeção judicial à Quinta da Torre revelou-se mais complexa do que o previsto. A propriedade era verdadeiramente magnífica, com uma casa senhorial de granito, jardins formais e um pomar centenário. Os representantes da Luxtower apresentaram os painéis com o projeto: um complexo hoteleiro que manteria a casa principal como receção e restaurante, acrescentando alas modernas e uma piscina onde atualmente existia o pomar. 

Enquanto os peritos discutiam, Helena notou Miguel afastando-se em direção a uma pequena capela nos fundos da propriedade. Impelida por uma curiosidade que ultrapassava o âmbito estritamente judicial, seguiu-o. 

"Dr. Sampaio," chamou, mantendo a formalidade diante dos outros presentes, "encontrou algo relevante?" 

Miguel estava diante de um pequeno altar lateral, observando uma pedra com inscrições. 

"Esta capela não estava incluída nos documentos da Luxtower," explicou ele. "Segundo os moradores locais, contém túmulos da família original e documentos históricos no arquivo paroquial. O projeto prevê transformá-la num spa." 

"Um spa numa capela?" Helena não conseguiu esconder a surpresa. 

"Exatamente," sorriu Miguel. "E isto não é apenas uma questão patrimonial, é uma questão legal. A capela pode ter sido doada à paróquia no século XVIII, o que significaria que nem sequer pertence aos atuais proprietários." 

Helena examinou a inscrição na pedra: uma data – 1743 – e o que parecia ser uma referência a uma doação. 

"Precisamos investigar isto adequadamente," decidiu ela. 

Nos dias que se seguiram, tanto Miguel como o Dr. Cardoso apresentaram alegações adicionais. Helena mergulhou nas pesquisas, trabalhando até tarde no seu gabinete, consultando livros de história local. Numa dessas noites, quando o tribunal já estava praticamente vazio, alguém bateu à sua porta. 

"Desculpa a hora," disse Miguel, quando ela abriu. "Mas descobri algo que não podia esperar até amanhã." 

Trazia consigo um livro antigo e vários documentos. Helena hesitou – era irregular receber uma das partes sozinha, depois do horário de expediente – mas a curiosidade académica falou mais alto. 

"Encontrei isto no Arquivo Municipal," explicou Miguel, espalhando os documentos sobre a mesa. "É uma escritura de doação da capela à Diocese de Braga, datada de 1743. A doação incluía não apenas a capela, mas também o pomar, considerado sustento para os padres que ali celebravam." 

Helena examinou os documentos com interesse genuíno. "Isto muda tudo," murmurou. 

"Sim," concordou Miguel. "Mas há mais." Ele hesitou, olhando-a diretamente. "Sabias que a Quinta da Torre pertenceu à tua família?" 

"O quê?" 

"Os Ribeiro da Costa," explicou ele. "O teu ramo materno, certo? Encontrei registos de que foram proprietários da Quinta entre 1798 e 1873." 

Helena sentiu um arrepio. A sua avó materna falava sempre de uma quinta que a família tinha possuído, mas ela sempre pensara tratar-se de um exagero genealógico. 

"Como... como descobriste isto?" 

Miguel sorriu. "Lembras-te daquele trabalho que fizemos juntos no quarto ano? Sobre história da propriedade no Minho? Eu nunca esqueci os nomes que pesquisámos. Quando vi 'Ribeiro da Costa' nos documentos, fiz a ligação." 

Ficaram em silêncio, o passado e o presente entrelaçando-se de formas inesperadas. 

"Helena," disse Miguel finalmente, abandonando a formalidade, "sei que é totalmente impróprio dizer isto, mas... senti a tua falta. Todos estes anos." 

Helena sabia que devia manter a distância profissional, mas vinte anos de perguntas sem resposta pesavam mais do que o protocolo judicial. 

"Por que nunca voltaste?" perguntou ela, a voz quase um sussurro. "Depois de Londres, depois de Bruxelas... nunca tentaste contactar-me." 

"Tentei," confessou ele. "Há dez anos. Descobri que estavas casada." 

Helena baixou o olhar. "O meu casamento durou quatro anos. Divergências irreconciliáveis, dizia o acordo de divórcio. Mas na verdade, acho que nunca..." 

Não terminou a frase, mas não era necessário. Os dois ficaram ali, no gabinete silencioso, com documentos de séculos atrás espalhados entre eles e duas décadas de vida por contar. 

"Tenho de me declarar impedida neste processo," disse Helena finalmente, recuperando a compostura. "Agora que sabemos da ligação familiar, seria eticamente impossível continuar." 

Miguel assentiu, compreendendo. "O caso será redistribuído." 

"Sim. Mas estes documentos que descobriste precisam de ser apresentados formalmente." 

Ele sorriu. "Sempre a seguir as regras, Helena." 

"Sempre foi o meu trabalho," retorquiu ela, permitindo-se um pequeno sorriso. 

Na semana seguinte, Helena declarou-se formalmente impedida no processo, que foi redistribuído a outro juiz. Os documentos descobertos por Miguel foram fundamentais para a decisão final: a capela e o pomar foram considerados propriedade da Diocese, o que forçou a Luxtower a redesenhar completamente o projeto, preservando grande parte da propriedade histórica. 

Dois meses depois, numa tarde de dezembro, Helena passeava pelo centro histórico de Guimarães. A cidade estava decorada para o Natal, com luzes cintilantes que realçavam as pedras medievais. Parou para admirar o Paço dos Duques coberto por uma fina camada de neve, quando ouviu uma voz familiar. 

"Dizem que esta é a cidade onde Portugal nasceu," comentou Miguel, aproximando-se. "Parece-me um bom lugar para recomeços." 

Helena sorriu. "Soube que o projeto da Quinta da Torre foi completamente reformulado. Vão preservar a casa e os jardins originais." 

"E a capela," acrescentou ele. "Onde, aliás, vai realizar-se um concerto de Natal na próxima semana. Pensei que talvez quisesses ir." 

"Seria isso ético, Dr. Sampaio?" perguntou ela, com um brilho nos olhos que desafiava a seriedade da pergunta. 

"Bem, Meritíssima, o processo está encerrado, o seu impedimento devidamente registado, e estamos fora do tribunal," respondeu ele, aproximando-se um pouco mais. "Além disso, há uma questão de justiça poética em tudo isto." 

"Justiça poética?" 

"Sim. Duas pessoas que se separaram para seguir a justiça, encontrando-se novamente por causa dela, vinte anos depois, no berço da nação." 

Helena riu, um som que Miguel não ouvia há duas décadas e do qual sentira falta todos os dias. 

"Sempre foste melhor com as palavras," admitiu ela. 

"E tu sempre foste melhor com as leis," retorquiu ele. "Talvez por isso formássemos uma boa equipa." 

Enquanto caminhavam juntos pelas ruas de pedra de Guimarães, onde o passado e o presente conviviam em harmonia, Helena pensou que talvez a verdadeira justiça não estivesse apenas nos códigos e sentenças, mas também nas segundas oportunidades, nas palavras finalmente ditas, e no tempo que, como um juiz sábio, às vezes concede recursos às causas que parecem perdidas.

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