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Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
30 de junho de 2025 às 13:16

A vinha disputada

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Edição de 19 a 25 de agosto

"Se os nossos avós eram sócios... e os nossos pais namoraram... isso significa que tu e eu..."

No Tribunal Judicial de Lamego, numa manhã de setembro que cheirava a vindimas, a Dr.ª Catarina Sousa ajustou os óculos e preparou-se para mediar uma disputa que, suspeitava, escondia muito mais do que questões de propriedade. 

"Processo nº 287/2024," anunciou o escrivão. "Autor: Manuel Rodrigues. Ré: Sofia Pereira. Objeto: Propriedade de terreno agrícola na Quinta dos Cedros." 

Manuel Rodrigues, um homem de cinquenta e cinco anos com mãos calejadas e olhos que denunciavam anos de trabalho ao sol, sentava-se tenso na primeira fila. Do outro lado, Sofia Pereira, uma mulher elegante de cinquenta anos com cabelo castanho apanhado num coque impecável, folheava nervosamente uma pasta de documentos. Era advogada em Lisboa, mas tinha regressado ao Douro pela primeira vez em vinte anos para esta audiência. 

"Sr. Manuel," começou a juíza, "pode explicar-nos a natureza da disputa?" 

Manuel levantou-se, claramente desconfortável no fato escuro que reservava para ocasiões especiais. 

"Meritíssima, a minha família trabalha a Quinta dos Cedros há três gerações. O meu avô comprou aquela vinha em 1952, o meu pai continuou a trabalhar a terra, e eu dediquei a minha vida inteira àquelas videiras. Há seis meses, a Srª. Sofia apareceu com documentos a dizer que parte da propriedade é dela." 

A juíza consultou o processo. 

"Srª. Sofia, confirma ter apresentado documentação sobre esta propriedade?" 

Sofia levantou-se com a elegância de quem estava habituada a tribunais, mas havia uma tensão na sua voz que não conseguia disfarçar. 

"Confirmo, Meritíssima. O meu avô, Joaquim Pereira, era sócio do avô do Sr. Manuel na compra original da quinta. Encontrei recentemente a escritura de sociedade entre eles, datada de 1952, que nunca foi dissolvida formalmente." 

Manuel abanou a cabeça vigorosamente. 

"Isso não pode ser! O meu avô nunca me falou de nenhum sócio!" 

"Talvez," disse Sofia suavemente, "porque houve uma disputa familiar que os separou." 

A juíza franziu o sobrolho. 

"Que tipo de disputa?" 

Sofia hesitou, olhando diretamente para Manuel pela primeira vez. 

"Os nossos avós eram melhores amigos, Meritíssima. Compraram a quinta juntos depois da guerra. Mas houve... complicações quando os nossos pais se apaixonaram." 

Manuel ficou lívido. 

"Os nossos pais?" 

"O meu pai, António Pereira, e a tua mãe, Rosa Rodrigues. Namoraram durante dois anos, nos anos setenta. Iam casar-se." 

O silêncio no tribunal era absoluto. Manuel sentou-se pesadamente. 

"A minha mãe nunca me disse..." 

"Porque terminou mal," continuou Sofia, a voz embargada. "O meu pai teve de emigrar para França em 1978, por falta de trabalho. Prometeu voltar para casar com a Rosa, mas... a vida aconteceu. Conheceu a minha mãe em Paris, casou-se por pressão da família. Quando voltou ao Douro, três anos depois, a Rosa já tinha casado com o teu pai." 

A Dr.ª Catarina observava a interação entre os dois com crescente interesse. 

"E como é que isto se relaciona com a propriedade?" 

Manuel encontrou finalmente a voz. 

"Se os nossos avós eram sócios... e os nossos pais namoraram... isso significa que tu e eu..." 

"Crescemos praticamente juntos," terminou Sofia. "Até aos dez anos, brincávamos na quinta todos os verões. Lembras-te das vindimas, Manuel? Lembras-te de como corríamos entre as videiras?" 

Manuel fechou os olhos, claramente recordando-se. 

"Sofia... pequena Sofia. Desapareceste um verão e nunca mais voltaste." 

"Porque os nossos pais não conseguiam estar na mesma divisão sem se olharem com... saudade. As nossas mães decidiram que era melhor assim." 

A juíza interveio delicadamente. 

"Srª. Sofia, porque decidiu reivindicar a propriedade agora, depois de tantos anos?" 

Sofia secou uma lágrima que não conseguiu reprimir. 

"Porque o meu pai morreu no mês passado. E nas suas coisas encontrei não só a escritura da sociedade, mas também... cartas. Cartas que escreveu à Rosa durante quarenta anos e nunca enviou." 

Tirou um maço de envelopes amarelados da pasta. 

"Cartas onde ele pedia desculpa por não ter voltado como prometera. Cartas onde dizia que nunca deixou de a amar. E uma última carta, escrita antes de morrer, onde me pedia para voltar ao Douro e fazer as pazes com a família Rodrigues." 

Manuel estava visivelmente emocionado. 

"A minha mãe morreu há dois anos. Nos últimos meses, falava muito do 'António de Paris'. Dizia que tinha sido o amor da vida dela, mas que às vezes as pessoas não conseguem ficar juntas, mesmo quando se amam." 

Sofia estendeu-lhe uma das cartas. 

"Esta é para ti. O meu pai escreveu-a depois de saber da morte da tua mãe." 

Manuel leu em silêncio, as lágrimas correndo-lhe pelo rosto. 

"Ele... ele diz que me considera como um filho. Que sempre quis conhecer-me melhor." 

"Manuel," disse Sofia suavemente, "eu não vim aqui para te tirar a quinta. Vim porque não conseguia viver com o peso dos segredos da geração anterior. A quinta sempre foi mais tua do que minha - tu dedicaste a vida a ela." 

A juíza observou os dois por um momento. 

"Então qual é exatamente o vosso pedido?" 

Sofia e Manuel entreolharam-se. 

"Meritíssima," disse Sofia, "gostaria de propor que a sociedade original seja finalmente honrada. Não para dividir a propriedade, mas para a tornar oficial novamente. Posso investir capital para modernizar a quinta, o Manuel tem o conhecimento e a experiência. Podemos fazer disto uma quinta de referência no Douro." 

Manuel acenou lentamente. 

"E eu... gostaria de conhecer melhor a filha do homem que a minha mãe nunca esqueceu." 

A Dr.ª Catarina sorriu pela primeira vez durante a audiência. 

"Isso parece-me uma resolução muito sensata. Estão dispostos a formalizar uma nova sociedade?" 

"Estamos," responderam os dois em uníssono. 

Dois anos depois, a Quinta dos Cedros tinha-se tornado numa das mais respeitadas quintas boutique do Douro. Sofia tinha deixado o escritório de advocacia em Lisboa e mudando-se permanentemente para o Douro. Manuel tinha finalmente um sócio que partilhava a sua paixão pela terra. 

E nas noites de verão, depois das vindimas, sentavam-se no alpendre a ler as cartas que António nunca enviara a Rosa, descobrindo que às vezes o amor verdadeiro não morre - apenas espera pela próxima geração para ser cumprido.

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