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Mariana Moniz
Mariana Moniz Psicóloga Clínica e Forense
21 de junho de 2024 às 07:00

A saúde mental dos reclusos

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Edição de 5 a 11 de agosto

A melhoria das condições de vida e dos espaços, a garantia de programas de reinserção e adaptação à liberdade e a existência de serviços de saúde mental adequados nos estabelecimentos prisionais são, então, fundamentais para garantir que o cumprimento destas penas é digno e humano.

O contexto de reclusão é um mundo à parte do nosso. Se nos questionarmos como estão os reclusos no nosso país, em que condições vivem, ou o que fazem para ocupar os seus dias, damos por nós sem conseguir dar uma resposta clara. Não raras vezes, nem temos interesse em obter essa resposta: a partir do momento em que a pessoa que comete um crime é condenada, não pensamos mais nela, a não ser que se trate de um familiar ou conhecido. Na prática, fica a reinar o bom ditado português "longe da vista, longe do coração".

Mas a realidade é que o escrutínio das condições de reclusão no nosso país seria de interesse global. No final de contas, não existindo prisão perpétua em Portugal, é expectável que todos os reclusos terminem, mais cedo ou mais tarde, as suas penas e voltem à sociedade. Como tal, a garantia de que são tratados humanamente, enquanto cumprem a sua pena, é condição essencial ao salutar retorno desta população ao mundo exterior, evitando a potencial reincidência criminal. Porém, uma análise cuidada da informação disponível sobre as condições das prisões portuguesas permite-nos concluir que a realidade da vida em reclusão é preocupante (no mínimo) e tenebrosa (no seu extremo).

Sabemos que nem todas as pessoas que cometem crimes padecem de problemas de saúde mental. Muitas vezes, os crimes são perpetrados em função de diversos fatores, designadamente a oportunidade, impulsividade, contexto de vida, entre outros. No entanto, reconhecemos, pelos estudos existentes na área, que a população reclusa, a nível mundial, regista significativamente mais problemas de saúde mental que a população geral. A prevalência de perturbações psicológicas e psiquiátricas é superior e há investigações que apontam para um risco de suicídio três a seis vezes superior para os homens e seis vezes superior para as mulheres a cumprir penas do que para os homens e mulheres do mundo exterior.

Certamente que muitos reclusos, no momento em que integram o sistema prisional, já detinham problemas psicológicos ou psiquiátricos prévios. No entanto, é inquestionável que esses problemas tendem a registar um agravamento ao longo da sua sentença e que este agravamento surge, frequentemente, como consequência das condições em que vivem, sobretudo na ausência de adequada intervenção.

Acresce que muitos reclusos têm pobres relações com a família e o próprio contexto prisional, alvo de repudia e estigma social, leva ao isolamento durante a reclusão e após o término da pena. Esse é um castigo que será, então, sofrido em solidão, constituindo um fator de risco.

O sentimento constante de que se está a ser observado e vigiado traz uma incessante sensação de que não existe privacidade, que é agravada se o recluso dormir em camaratas com outros reclusos. Assim, as próprias condições dos estabelecimentos prisionais, habitualmente deficitárias e sobrelotadas, são fatores que relevam significativamente para os problemas de saúde mental que se registam nestas populações e Portugal não está imune a estes problemas.  

Relatórios sobre as condições prisionais em Portugal, desde o financiado pelo projeto European Prison Observatory, em 2013, ao mais recente relatório do Comité para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes (CPT) do Conselho da Europa, publicado em dezembro de 2023, expõem uma realidade difícil. A sobrelotação e descuidado de espaços antigos, danificados, inadequadamente mobilados ou aquecidos são reportados em diversos estabelecimentos prisionais do país. Os próprios reclusos têm de comprar os produtos (com os preços altamente inflacionados das prisões) para garantir a limpeza dos seus espaços, recorrendo a dinheiro proporcionado por familiares ou necessitando de trabalhar (recebendo até 100 euros num bom mês de trabalho) para adquirir os produtos que necessitam para a manutenção de uma vida digna. Quanto à alimentação, não se espere nutrição ou qualidade, porquanto são proporcionadas duas opções, uma standard e uma de dieta (só proporcionada mediante receita médica e, por vezes, com longas esperas até ao desbloquear desse tipo de menu), cuja quantidade e qualidade são insuficientes para uma saudável subsistência. E não são só os reclusos que passam por tratamentos indignos: os familiares ou amigos que desejem visitar o seu ente querido são frequentemente alvo de tratamentos humilhantes por parte dos profissionais que os recebem e as próprias visitas não proporcionam a privacidade desejada.

Se estas condições físicas não fossem suficientes para preocupação, não há serviços fiáveis de apoio psicológico a estes reclusos, que resumimos ao seguinte excerto do relatório de 2013: "as condições nas quais [os reclusos] são mantidos no hospital psiquiátrico da prisão são inacreditáveis do quão primitivos são". Ainda que reconhecendo melhorias ao longo dos anos, o relatório de 2023 assevera que "não houve uma mudança da abordagem em relação aos pacientes (...) as condições físicas da clínica impedem a qualidade do serviço e não permitem construir um processo terapêutico centrado na pessoa". De acordo com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, em 2018, para 14 mil reclusos, existiam apenas 30 Psicólogos nos estabelecimentos prisionais portugueses. Estas e outras condições estiveram na base da condenação de Portugal pelo Tribunal Europeu por más condições prisionais no início de 2024, mas a maior parte das queixas são prontamente ignoradas e desencorajadas, sob risco de sofrer retaliações ao longo da pena.

Deparados com esta realidade, torna-se mais fácil compreender como os mais saudáveis reclusos podem desenvolver problemas de saúde mental, ao longo do cumprimento da sua pena. Para muitas pessoas, será difícil empatizar com a população prisional, pois, no final de contas, infringiram a lei. No entanto, a reclusão e o cumprimento da sua pena já são as consequências desses comportamentos. Não deverão ser ainda submetidos a condições desumanas, nem ficar privados de uma adequada intervenção com vista à ressocialização. A melhoria das condições de vida e dos espaços, a garantia de programas de reinserção e adaptação à liberdade e a existência de serviços de saúde mental adequados nos estabelecimentos prisionais são, então, fundamentais para garantir que o cumprimento destas penas é digno e humano.

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