Como se castra um Tribunal
Amputar o Tribunal de Contas não é fazer a reforma do Estado. É abdicar dela.
Quando em 1993 o primeiro-ministro Cavaco Silva deu em queixar-se das “forças de bloqueio” que não o deixavam trabalhar, caiu-lhe metade do país em cima. O cavaquismo estava na sua degenerescência final, atolado em casos de corrupção e negócios expeditos. Nesse contexto, abrir guerras com o Presidente da República, o Tribunal Constitucional ou o Tribunal de Contas era visto, e bem, como uma tentativa de reduzir Estado de Direito a uma intendência do chefe.
32 anos depois, Luís Montenegro, que ainda ontem confessou ter em Cavaco a sua “referência”, precisa de reaprender a lição. Aluno aplicado do mesmo discurso “deixem-nos trabalhar”, Montenegro e o seu Governo parecem empenhados em desmantelar freios e contrapesos, sorrateiramente e sem alarido. Inteligentemente, a tarefa foi entregue a um tecnocrata discreto e diligente, Gonçalo Saraiva Matias, arrumado no pouco notado Ministério da Reforma do Estado. Convém tomarmos atenção.
Esta semana, no Parlamento, o ministro anunciou para janeiro propostas de revisão do Código dos Contratos Públicos, do Código do Procedimento Administrativo e da Lei Orgânica do Tribunal de Contas. Não disse muito de concreto. Queixou-se da burocracia, lamentou regras e instituições baseadas na desconfiança sobre os decisores públicos e concluiu que o visto prévio que o Tribunal de Contas tem de dar a contratos públicos de valor relevante é um entrave ao progresso do país, sem paralelo na Europa.
Antes de vir para o Governo, Gonçalo Matias era presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que se dedica a estudar Portugal – e faz um bom trabalho. Seria de esperar, até por esse currículo, que o ministro reformista tivesse o instinto de identificar de forma clara e documentada os problemas do sistema que pretende reformar, e promover um debate amplo e aberto com as instituições, a academia e o país, antes de se pôr a martelar soluções.
Em vez disso, Gonçalo Matias atira ao Tribunal de Contas a culpa pelas demoras nos processos de contratação pública, esquecendo que o prazo legal para o visto prévio (sob pena de se transformar num visto tácito) são 30 dias úteis e o prazo médio apenas 12, como disse também esta semana no Parlamento a presidente do Tribunal, Filipa Calvão. É verdade que muitos processos se arrastam para lá desses prazos, por uma razão simples: vêm mal instruídos pelas entidades que gastam o nosso dinheiro, obrigando o Tribunal a pedir dados ou esclarecimentos adicionais. O problema é a má preparação dos contratos pelas entidades públicas, não o controlo do Tribunal. A solução, portanto, nunca é começar a deixar passar contratos mal-amanhados, só porque é mais rápido assim.
É verdade que o Código dos Contratos Públicos é demasiado labiríntico, sem sequer ter ao menos o mérito de evitar cambalachos, porque são tão tortuosos os procedimentos que, no fim, há sempre válvulas de escape (urgências imperiosas, necessidades imprevistas) por onde passam as maroscas. E, quando o Código não tem buracos que cheguem, fazem-se leis à medida para aliviar os controlos porque o “interesse público” o exige: por causa da pandemia, porque o PRR é para gastar ou porque vem cá o Papa. Portugal vai colecionando inquéritos na Procuradoria Europeia por suspeitas com fundos da UE, o think-tank promovido pela Procuradoria-Geral da República alerta repetidas vezes para a falta de controlos e os riscos de fraude, mas o problema é o Tribunal de Contas.
Faltam pessoas qualificadas nos sistemas de compras do Estado. Falta informação clara, completa e acessível que permita aos decisores públicos comparar preços e condições e negociar de igual para igual com os fornecedores. Falta planeamento de compras e de investimentos, que permita saber o que vai ser feito, por que ordem de prioridades e quando é para fazer, dando tempo para preparar e instruir os processos de forma eficiente. Não há uma separação rigorosa entre os executantes técnicos e os decisores políticos, permitindo que os contratos sejam canalizados para os amigos do partido. Mas a “força de bloqueio” é o Tribunal de Contas. As recomendações feitas pelo Tribunal nas suas auditorias a posteriori são olimpicamente ignoradas pelas entidades públicas e pelos decisores políticos, mas o futuro é acabar com os vistos prévios e passar o controlo para as auditorias que olimpicamente ignoramos.
Sem dados que confirmem que os problemas estão de facto onde ele os aponta, o ministro vai repetindo que ninguém usa vistos prévios na Europa – o que é falso: vários países têm diferentes modelos de autorização prévia de despesa, aplicados por diferentes instituições de controlo, incluindo Tribunais de Contas. E recorre a um argumento anedótico – no duplo sentido de baseado num caso concreto; e de chistoso, de brincadeira: o processo da reconversão do matadouro do Porto, em que o próprio Presidente da República molhou a sopa, dizendo que o Tribunal de Contas se tinha intrometido na esfera de decisão política da Câmara do Porto. Para desmontar essa patranha, nada como ler o acórdão do Tribunal, que negou o visto prévio ao negócio não por achar que o povo de Campanhã não merece ter cultura, mas porque o município tentou passar por mero contrato de arrendamento o que era, afinal, uma PPP complexa, entregue aos amigos da Mota-Engil sem transparência, sem concorrência, sem acautelar a repartição de riscos entre público e privado e sem proteger os interesses financeiros do Estado.
É com base neste festival de meias-verdades e aldrabices completas que o Governo prepara agora a reforma do Tribunal de Contas – que ainda nem foi ouvido sobre o assunto! Quem tem então as mãos nessa reforma? O ministro anunciou o seu perito no Parlamento: Rui Medeiros, professor de Direito e sócio principal da Sérvulo, uma grande sociedade de advogados que já tinha trabalhado no Código dos Contratos Públicos de 2006 (o tal que agora não serve) e que desde então já cobrou quase 32 milhões de euros a entidades públicas para litigar ou aconselhar sobre a legislação que escreveu. A reforma do Estado do ministro Gonçalo Matias faz-se, sem qualquer avaliação de conflitos de interesses, com a Sérvulo, uma das grandes centrais de litigância, legislação e lóbi deste país, que assim joga em simultâneo no poder legislativo, no poder executivo e no poder judicial.
Já conhecemos bem demais estas reformas de porta giratória. Gonçalo Matias promete um mero e benigno ajuste no Tribunal de Contas, mas prepara um ajuste de contas com o Tribunal. O ministro pode ter a melhor das intenções, mas está a fazer a coisa errada da forma errada. Se não quer passar à História como o reformista que legalizou o saque, arrepie caminho. Caso contrário, Portugal ficará a dever-lhe as próximas duas décadas de atraso.
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