E quando parecia que a situação Portugal-Eurovisão estava definida, eis que tudo mudou. Esta quarta-feira, 10 de dezembro, uma parte significativa dos concorrentes à edição deste ano do Festival da Canção - concurso organizado pela RTP, que elege, habitualmente, o representante português no Festival Eurovisão da Canção - emitiu um comunicado conjunto assumindo uma posição coletiva: quem, entre os signatários, vencer o concurso, não irá atuar no Festival da Eurovisão, dada a não exclusão de Israel do certame.
"Não compactuamos com a violação dos Direitos Humanos", anunciaram 17 músicos e intérpretes que vão concorrer este ano ao Festival da Canção, complementando, em nota oficial enviada à Agência Lusa: "Apesar da proibição de participação da Rússia na edição de 2022 na Eurovisão, por motivos políticos (a invasão da Ucrânia), foi com espanto que constatámos que não foi dado o mesmo destino a Israel, que está, segundo a ONU, a cometer atos de genocídio contra os palestinianos em Gaza."
Fora do conjunto de compositores e intérpretes que assinaram esta posição conjunta estão bandas e artistas como André Amaro, Bandidos do Cante, Agridoce, Sandrino e Dinis Mota, que participam este ano e não se comprometeram a boicotar a ida à Eurovisão em caso de vitória no Festival da Canção, noticiou esta quarta-feira à tarde a Agência Lusa.
À SÁBADO, fonte da estação avança a posição oficial da RTP perante a promessa de boicote de 17 participantes no concurso. Começa por indicar que "a RTP recebeu o comunicado de alguns autores convidados a participar na 60ª edição do Festival
da Canção 2026" mas indica que "independentemente da decisão dos artistas que subscrevem o comunicado, cujo teor compreendemos, a
RTP vai voltar a organizar o Festival da Canção e reafirma que vai participar
no Festival Eurovisão da Canção 2026, tal como a esmagadora maioria de países membros
da EBU".
Sem mais detalhes, a posição da RTP parece abrir a porta a que a estação marque presença na Eurovisão independentemente de quem for o vencedor do Festival da Canção. Isto é, levanta a hipótese do representante de Portugal na Eurovisão poder não ser coincidente com o vencedor do Festival da Canção, caso o último decida boicotar a ida à 70.ª edição do concurso em Viena, na Áustria.
O que está em causa
A polémica face à permanência de Israel no Festival Eurovisão da Canção de 2026 está a transformar ainda mais o concurso num palco para tensões políticas e disputas diplomáticas. Desde que a União Europeia de Radiodifusão, que o organiza, anunciou na passada sexta-feira, 5 de dezembro, que a participação de Israel na 70ª edição do concurso seria permitida, os debates em torno da permanência ou não no concurso que passa ao lado do genocídio em curso em Gaza cresceram em boa parte dos países que habitualmente participam na Eurovisão.
Em protesto, as estações públicas de Espanha, Países Baixos, Irlanda, Eslovénia e Islândia optaram desde já por não participar na próxima edição do festival enquanto em Portugal a RTP confirmou a presença na 70ª edição do concurso a 4 de dezembro, dando azo a reações críticas de alguns portugueses e de parte significativa dos trabalhadores da RTP. Nesse contexto surgiu uma petição pública “Pela Retirada Imediata de Portugal do Festival Eurovisão da Canção Enquanto Israel Participar”, que já conta com mais de 13 mil assinaturas.
A decisão de excluir um país da Eurovisão por motivos políticos não seria algo inédito para a organização da Eurovisão. A Rússia foi recentemente excluída do concurso, por exemplo, na sequência da invasão militar à Ucrânia e a decisão foi descrita então pelo diretor executivo do Festival Eurovisão, Martin Osterdahl, como “díficil”. “Foi [difícil] e ainda é. A forma como a Europa se sente afeta muito a competição", declarou então Osterdahl numa entrevista à estação britânica BBC, acrescentando: “Quando dizemos que não somos políticos, o que sempre devemos defender são os valores básicos e fundamentais da democracia.”
A ofensiva militar pela parte de Israel na Faixa de Gaza intensificou-se depois do massacre do grupo palestiniano Hamas em Israel em outubro de 2023. Desde então o conflito já terá causado mais de 72.000 mortes, das quais pelo menos 20.000 terão sido crianças palestinianas, estimam algumas organizações internacionais. Desde a intensificação do conflito que Israel tem tido representantes no Festival Eurovisão.
“O Festival da Eurovisão é um concurso para estações de rádio e televisão [não países] e os canais de comunicação russos foram suspensos do concurso pela organização por violações sucessivas das responsabilidades que tinham enquanto membro", justificou, em declaração oficial, a União Europeia de Radiodifusão, que organiza a Eurovisão. Porém, tanto o público como alguns dos participantes permaneceram descontentes com a complacência do festival perante as ofensivas de Israel em Gaza.
Em 2024, a cantora israelita Eden Golan representou Israel com a canção Hurricane, que lembrava o ataque do grupo terrorista Hamas em outubro de 2023. A televisão israelita KEN foi então acusada de manipulação das imagens e de censura de mensagens pró-Palestina no evento. Houve ainda vários relatos de uma promoção desajustada e fraudulenta da canção através das redes sociais. Eden Golan regressou a casa com um 5º lugar, acumulando 375 pontos.
"Duplos critérios" e os argumentos da RTP
Um dos países que não participará este ano na Eurovisão, a Espanha, foi particularmente crítico da decisão da organizadora do festival em permitir a presença de um representante de Israel. Alfonso Morales, secretário geral da emissora espanhola RTVE, justificou, quando anunciou a exclusão espanhola: “Não devemos aceitar duplos critérios."
O representante da emissora espanhola apontou ainda, citado em nota informativa da RTP: "A situação em Gaza, apesar do cessar-fogo e da aprovação do processo de paz, e o uso do concurso por Israel para fins políticos tornam cada vez mais difícil manter o Festival da Eurovisão como um evento cultural imparcial.”
As posições oficiais das emissoras dos Países Países, de Eslovénia, da Irlanda e da Islândia não foram muito distintas. A emissora holandesa Avotros, por exemplo, alegou que a sua participação não seria "compatível com os valores públicos fundamentais" que a norteiam e o canal público esloveno lembrou "as 20.000 crianças que morreram em Gaza" para justificar o boicote. Já a emissora irlandesa RTE aludiu à "terrível perda de vidas em Gaza e à crise humanitária em curso" para explicar porque optou por não participar em 2026.
Em Portugal, a RTP teve uma leitura diferente em relação à participação de Israel e à validade do concurso e anunciou que pretendia participar na próxima edição do Festival da Eurovisão, depois da alteração de algumas regras no processo de votação para aumentar a "transparência e segurança do televoto", limitando o que se considerou ser, nos últimos dois anos, uma promoção excessiva, coordenada e global dos representantes de Israel através das redes sociais, por parte de entidades estatais do país. As alterações para "reforçar a confiança e a transparência" e para "garantir a neutralidade do evento" bastaram, portanto, à emissora pública nacional para não se retirar do concurso.
Como resposta, a 5 de dezembro foi criada uma petição pública que apelava a que o conselho da administração da RTP e o Ministro da Cultura se coordenassem de modo a que Portugal não tivesse um representante na próxima edição do concurso. “Face à gravidade da situação humanitária, à manipulação comprovada dos resultados como ferramenta de propaganda e à vergonhosa posição de apoio manifestada pelo voto português, exigimos que a RTP anuncie a não-participação de Portugal na Eurovisão 2026”, lia-se no texto reivindicativo.
Salvador Sobral, único vencedor português da Eurovisão em 2017 com a canção Amar Pelos Dois, já criticou a RTP pela decisão de levar um representante português à próxima edição do concurso. Através de um vídeo nas redes sociais, lamentou o "medo de fazer a coisa certa" e a "coberdia política" das instituições, considerando "óbvia a decisão que se tem de tomar". No mesmo vídeo, clarificou que acha "que se de fazer o Festival da Canção", uma "boa montra" para artistas portuguesas, mas "quem ganha o Festival da Canção não deveria ir à Eurovisão, é uma decisão muito fácil".
A 70ª Edição do Festival da Eurovisão acontece em maio de 2026 em Viena, na Áustria.