Para atravessar o duro início de ano, o crítico Eduardo Pitta escolheu novos livros e edições: romances que vão do primeiro de Richard Zimler ao clássico de ficção científica. Mas também há Farpas e suicídio
A espanhola Almudena Grandes (n. 1960) não desiste de radiografar o regime franquista. Começou em 2010 com o romanceInés y la Alegría, primeiro de uma série a que chamouEpisódios de uma Guerra Interminável, publicando em 2017Os Doentes do Doutor García, agora traduzido. Na forja estão outros dois. O livro trata da rede clandestina de evasão de criminosos de guerra nazis, dirigida por Clara Stauffer a partir de Madrid. Como nos anteriores, a autora constrói a ficção a partir de factos e personagens reais (são citados pelo nome alguns dos 800 nazis que Stauffer ajudou a fugir para Buenos Aires).
A ação decorre em vários países, entre 1936, por ocasião do Festival de Ópera de Bayreuth, e 1977, no auge da ditadura militar argentina instaurada por Videla. O médico Guillermo García Medina, conhecido por outros nomes a partir de 1939, e o diplomata Manuel Arroyo Benítez, que também usa nomes falsos, são as personagens fictícias que sustentam este romance empolgante, no qual Almudena Grandes faz um ajuste de contas com a História, ou não fosse ela, além de romancista, também historiadora.
A reedição deO Bom Soldado, de Ford Madox Ford (1873-1939), traz de volta um mogul da literatura. Simplificando muito, pode-se dizer queQuadrilha, o poema de Carlos Drummond de Andrade, é uma "síntese" irónica, deslocada no tempo, no lugar e nas intenções, desta obra-prima de 1915. O introito da edição canónica de 1927 (uma carta escrita à mulher, Stella, depois doaffairecom Jean Rhys), leva-nos a supor que se trata de um roman à clef. Será Edward Ashburnham um alter ego do autor? Abrindo com a famosa frase "Esta é a mais triste história jamais contada" -,O Bom Soldadoé um tratado ácido sobre a imprevisibilidade das paixões.
Quem aprecia ficção científica conhece Frank Herbert (1920-1986), "autodidata" libertário frequentemente comparado ao erudito Tolkien, que escreveu O Senhor dos Anéis, e autor de clássicos como os seis romances da sagaDuna, que David Lynch transpôs para o cinema em 1984 e que terá nova versão a estrear em 2021. Compósito de política, religião, ecologia e alteração de consciência em ambiente interestelar feudal, num futuro longínquo, tudo gira em torno da mélange da imortalidade. A história de Paul Atreides, senhor de Arrakis (adversário dos Harkonnen), tem galvanizado gerações. O volume inclui um glossário da terminologia do Império.
Editar em forma de antologia breve As Farpasque Ramalho Ortigão (1836-1915) publicou entre 1872 e 1883, acrescentando-lhe textos posteriores publicados até 1914, alguns deles na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, é uma forma hábil de pôr o leitor a refletir sobre o presente, a partir da vida portuguesa durante a monarquia constitucional e no início da República. Francisco Abreu fez a seleção deste Ramalho a solo (como é sabido, Eça foi coautor das Farpas antes de partir para Havana), optando por textos que "denotam uma espantosa - e deveras preocupante - atualidade". Viriato Soromenho-Marques assina o prefácio.
Saiu finalmente em português o primeiro romance de Richard Zimler (n. 1956),Insubmissos, publicado em inglês em 1996 e com a tradução "congelada" até hoje porque, na altura, o escritor temeu que lhe fosse negada a renovação do visto de trabalho em Portugal se o editasse. Escrito em linguagem crua, sob o leitmotiv da sida,Insubmissosaborda a homossexualidade das suas personagens. Importa pouco saber se o narrador (um professor de guitarra, judeu) e o autor são a mesma pessoa. Lê-se com agrado e as ocasionais fragilidades não beliscam o plot.
Professor de Psicologia Clínica em Columbia, Andrew Solomon (n. 1963) tornou-se conhecido com O Demónio da Depressão, mas a sua obra abrange um espectro mais largo, dos direitos LGBT à arte soviética. Tendo o suicídio como denominador comum, os nove ensaios deUm Crime da Solidãofalam de celebridades que se mataram, como a designer Kate Spade, o ator Robin Williams ou o chef de cozinha Anthony Bourdain, mas também da mãe do autor. Um livrinho didático que ajuda a perceber as possíveis razões de um ato tão radical.
