Foi um agente que escolheu o nome artístico da estrela mais sensual do século XX. Teve uma infância difícil e uma carreira incompreendida. A atriz que lhe dá vida, Anna Sant'Ana, mostra as facetas ocultas no monólogo em cena no Teatro da Trindade, em Lisboa, até 22 de dezembro.
Foi um agente que escolheu o nome artístico da estrela mais sensual do século XX. Teve uma infância difícil e uma carreira incompreendida. A atriz que lhe dá vida, Anna Sant'Ana, mostra as facetas ocultas no monólogo em cena no Teatro da Trindade, em Lisboa, até 22 de dezembro.
Tem olhos azuis (lentes) e é loira artificial, pela peruca. Mas no palco, Anna Sant'Ana imortaliza a estrela de Hollywood mais sensual do século XX: Marilyn Monroe. Aos 44 anos, a atriz brasileira, natural de São Paulo, aventura-se num monólogo de hora e meia para contar a história do ícone do cinema.
Alípio Padilha
Não foi um mar de rosas, como se sabe pelo final trágico, mas há pormenores, lá atrás, que retratam aspetos mais desconhecidos: como a infância difícil e a carreira nem sempre foi compreendida por quem achava que ela se devia restringir ao estereótipo de sex-symbol. Há uma Marilyn feminista, pioneira e admirada por outras mulheres, garante Anna Sant'Ana.
Em entrevista à SÁBADO, a atriz brasileira relata como foi o processo de criação da personagem: longo e detalhado, numa pesquisa que começou em 2010. A peça Marilyn, por Trás do Espelho está em cena no Teatro da Trindade, em Lisboa, até 22 de dezembro (de quarta a domingo, às 19h).
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Porque é que Norma Jeane nunca gostou do seu nome artístico, Marilyn Monroe?
Marilyn surgiu através de um dos primeiros agentes dela, o Ben. Porque Norma Jeane não era forte o suficiente para ser uma estrela de Hollywood. Ela queria muito usar Jeane, porque além de fazer parte do nome original, era fã da Jean Harlow. Inspirou-se muito nela: também era loira platinada, com curvas esculturais. Falo um pouquinho de Jean Harlow no início do espetáculo. Ben acaba convencendo-a a mudar para Marilyn. Monroe vem da família da mãe, era o apelido da avó.
Ela nasceu e morreu em Los Angeles, Califórnia (Estados Unidos). A peça passa-se em casa, porquê?
A história que conto é numa casa que ela comprou no final da vida, com a ajuda de Joe DiMaggio [com quem esteve casada de 1954 a 1955]. Porque ela viveu muito em hotéis, ou apartamentos arrendados.
Dos três maridos, Joe DiMaggio foi quem mais a amou?
Ela foi o grande amor da vida dele. Ela amou muito Joe, via-o como o porto seguro. Logicamente, quando ela estava casada com o Arthur [Miller, de 1956 a 1961] não tinha tanto contacto com Joe. Mas nunca se perderam um do outro. Quando se separou do Arthur, retomaram a proximidade. Inclusive, há relatos de que ele a teria pedido novamente em casamento nos últimos meses de vida dela, mas não está provado. Ele era uma pessoa que vinha de outro mundo, do desporto. Era italiano, criado numa família mais clássica e machista. Achava que a mulher era para ser a esposa que ficava em casa. Ele estava com ela na época d'OPecado Mora ao Lado [1955], o filme que mais explodiu. A cena do vestido levantando é a mais icónica dela. Imagina para um homem conservador ver a mulher ali, com os homens enlouquecidos por ela…
Terá sido insustentável para Marilyn suportar um marido ciumento?
A separação acabou sendo inevitável. Mas existia muito amor ali. Tanto da parte dele, como dela. Depois ele teve uns relacionamentos, mas nunca um casamento. Prometeu-lhe que iria colocar flores no túmulo dela em Los Angeles. Mandou-lhe semanalmente rosas, até morrer, numa prova de devoção e amor.
Anna Sant'Ana: "Marilyn sofreu abusos aos 8 anos e outros mais tarde. Resolvi contar a sua história"
Qual a sua análise sobre a morte dela, aos 36 anos, a 5 de agosto de 1962?
Ela estava num momento da vida muito difícil e abusou dos barbitúricos [sedativos]. Isso já tinha acontecido outras vezes, quando ficava num estado emocional mais frágil. Juntava a bebida.
Porque é que começou a estudar a vida dela em 2010?
Há 14 anos fiz um espetáculo sobre uma atriz brasileira, Leila Diniz. Éramos quatro atrizes em palco, cada tinha uma característica da Leila. Fiquei com o lado mais divertido e sexy. Num ensaio, o diretor trouxe um livro com as últimas fotos da Marilyn, queria que eu me inspirasse e pediu para cortar o cabelo igual ao dela. Cortei, fiquei bastante loira. Ali, comecei uma pequena pesquisa. No ano seguinte, em 2011, fiz o espetáculo Besame Mucho, do autor brasileiro Mário Prata. Contava a história de dois casais, ao longo de duas décadas, e a minha personagem tinha várias fantasias com o marido. Uma delas era vestir-se de Marilyn e fazer a cena do filme OPecado Mora ao Lado [1955, do vestido branco a esvoaçar]. Aí disse: "Nossa, de novo?" Resolvi contar a sua história. Ao longo de anos, fui fazendo trabalhos como atriz e estudando a vida dela.
Compilei frases dela, trechos de livros. Entreguei mais de 70 páginas na mão de um dramaturgo, Daniel Dias da Silva. Ele adaptou para monólogo"
Como fez a pesquisa?
Assisti a todos os filmes, documentários, li entrevistas e coisas na Internet sobre ela. Li muitas biografias, uma em específico norteou a minha pesquisa: The Final Years of Marilyn Monroe (Os últimos anos de Marilyn Monroe, 2012), de Keith Badman. Porque ele comprova fatos e isso me deixou muito segura para escrever. Há coisas que não se podem comprovar, como a causa da morte dela. Nada do que tem no espetáculo é inventado. Foi a premissa da construção desse texto. Na pesquisa que fiz ao longo dos 14 anos, juntei material que achava importante. Compilei frases dela, trechos de livros. Depois entreguei mais de 70 páginas na mão de um dramaturgo, Daniel Dias da Silva. Ele adaptou para monólogo de teatro. Muitas coisas foram cortadas para um espetáculo de 1h30.
Na peça, fala dos traumas dela. Começaram na infância, quando?
Marilyn sofreu abusos aos 8 anos e outros mais tarde. A mãe comprou uma casa, só que não conseguia sustentá-la sozinha e arrendava quartos. Trabalhava como cortadora de negativos nos estúdios de Hollywood. Um amigo da área técnica dos estúdios, foi morar para lá. Pagava um quarto. Um dia, chamou Norma ao quarto e molestou-a. Não falo disto na peça, mas depois ele dá uma moeda para ela e diz: "Vai comer um sorvete." Ela contou à mãe, que não acreditou nos abusos. Sofreu outros, mais tarde.
Quando?
As grandes estrelas de Hollywood sofriam muito, principalmente naquela época: acabavam saindo com diretores, produtores, para conquistarem alguma coisa. Sentiam-se quase obrigadas a fazê-lo, já que era essa a moeda de troca. Infelizmente era assim.
Na vida sentimental era emancipada?
Pediu divórcio nos três casamentos, numa época em que as mulheres nunca imaginavam divorciar-se dos maridos. Nos anos 60 era um escândalo. Quando ela não estava feliz no casamento, pedia o divórcio. Depois casava-se novamente. Hoje é normal. Em relação à sexualidade, tinha seus desejos e se estava a fim daquela pessoa ia lá. As mulheres admiravam-na, viam em Marilyn uma mulher forte que não aceitava o papel que lhe era imposto pela sociedade. Foi uma das maiores motivações que tive para contar a história de uma mulher que lutou pelos seus direitos, pela sua felicidade e carreira. Foi muito além do símbolo sexual que pintam, ou da estrela de cinema. Enquanto as mulheres eram criadas para serem donas de casa, recatadas, obedientes aos maridos, sem trabalharem, ela ia em contra-mão disso tudo. Fundou a sua produtora [Marilyn Monroe Productions, MMP] para ter autonomia na escolha de papéis, opinar sobre diretores e roteiros.
As pessoas não entendiam a vontade de ela querer saber mais. Estudava muito, tinha uma biblioteca com mais de 400 livros"
Interrompeu a carreira no auge, para ter formação no Actors Studio, em Nova Iorque. Nem sempre foi compreendida por querer ser levada mais a sério. Porquê?
Nenhuma mulher tinha voz ativa na época. Por isso, Marilyn foi uma mulher muito à frente do seu tempo. Além de ter ditado modas e comportamentos, lutou contra uma indústria cinematográfica dominada por homens, para dizer que não queria só o tipo de papéis que a tornaram famosa. Mas ela disse: "Quero ser uma atriz que possa fazer qualquer tipo de papel." E não só pelo estereótipo. Realmente, ela era uma mulher linda, mas não queria fazer papéis só de mulher deslumbrante e sexy. Parou tudo durante um ano e foi estudar para o Actors Studio. Isso foi mal compreendido, porque ela era a estrela mais famosa de Hollywood. As pessoas questionavam, para quê procurar outras coisas. As pessoas não entendiam a vontade de ela querer saber mais. Estudava muito, tinha uma biblioteca em casa com mais de 400 livros de filósofos, pessoas do teatro, do cinema, dos mais variados meios. Foi fotografada várias vezes com livros e estava realmente lendo-os.
Em termos de construção da personagem, como chegou aos trejeitos dela?
Segui a indicação da encenadora Ana Isabel Augusto. A gente construiu a Marilyn de dentro para fora, sob o ponto de vista da Norma Jeane que dizia que a Marilyn era uma personagem criada por ela. Aquela personagem acabou ficando tão forte que ela se tornou a parte maior da vida dela. Marilyn era uma personagem. A Norma Jeane não. Partindo dessa construção, é que a gente foi para os trejeitos para se aproximar da Marilyn que todo o mundo conhece. Há momentos específicos do espetáculo, inclusive quando digo frases dela, que vou mais para esse exterior dos trejeitos. E outros não, são momentos mais íntimos da Norma Jeane. Foi importante acontecer dessa maneira, porque só uma imitação ficava a história vazia. De dentro para fora, conseguimos construir mais camadas.
Que cuidados teve no guarda-roupa e na caracterização?
Eu e a encenadora indicámos à figurinista algumas roupas da Marilyn que gostaríamos que fossem reproduzidas, nomeadamente: o vestido de OPecado Mora ao Lado [1955], o clássico branco; o vestido do Happy Birthday [quando cantou para o Presidente John F. Kennedy, na gala de Madison Square Garden em 1962]; o vestido [cor de rosa] do Diamonds Are a Girl's Best Friend [parte da banda sonora do filme OsHomens Preferem as Loiras, de 1953]. No início apareço de body, por sugestão da encenadora, porque queria uma roupa em que ela estivesse à vontade, em casa. O robe que uso é uma imitação de uma peça de roupa do filme Niagara [1953].
Há mais alguma atriz brasileira que se tenha dedicado tanto à pesquisa da vida de Marilyn?
No Brasil, não. Nos Estados Unidos, não sei. No Brasil houve outro monólogo sobre ela; além da história do Arthur Miller com ela, um texto de ficção. Houve espetáculos de situações hipotéticas, quando a juntaram a Maria Callas. Nada tão a fundo na pesquisa sobre a vida dela. Provavelmente nos Estados Unidos sim, há muitos filmes e séries que aprofundam a vida dela.
O que achou do filme Blonde (2022)?
A autora disse que era uma ficção inspirada na Marilyn. Não gostei do filme, os fãs de Marilyn também não gostaram. Porque retratou a Marilyn exatamente como ela não queria ser retratada: como uma mulher louca.
Identifica-se com algum aspeto da vida dela?
Identifico-me mais com o aspeto da carreira de atriz, que é muito difícil. Se não tiver determinação e foco é muito fácil desistir.
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