Criador da série Twin Peaks fez um livro

Mais de 25 anos depois de o corpo de Laura Palmer ter aparecido, enrolado em plástico, no primeiro episódio de Twin Peaks, Mark Frost, co-criador da série, com David Lynch, regressa à misteriosa cidade norte-americana com um romance que revela o passado e alguns segredos dos seus habitantes. A SÁBADO falou com o autor de A História Secreta de Twin Peaks sobre o livro, a série que mudou a maneira de se fazer ficção em televisão e os novos episódios, previstos para 2017. "Conheci David Lynch alguns anos antes, porque os nossos agentes pensaram que nos iríamos dar bem, e trabalhámos em alguns projectos antes de fazermos Twin Peaks", conta Frost ao telefone, a partir de Santa Barbara, na Califórnia, ainda a recuperar de mês e meio na estrada, a promover o livro (que nos Estados Unidos saiu em Outubro) - "durante a pior campanha eleitoral de sempre", como fez questão de sublinhar.

Nenhum destes projectos idealizados com Lynch chegou, porém, a ser concretizado. "Como é muitas vezes o caso nesta área", desabafa o autor, que nos anos 80 foi guionista da série policial Balada de Hill Street, o que lhe valeu a nomeação para os Emmys e o prémio da Writers Guild of America em 1985.

Welcome to Twin Peaks
"Finalmente lá chegou uma proposta da NBC, a perguntar se estaríamos interessados em fazer qualquer coisa, aproveitando a carreira emergente do David no cinema e a minha em televisão", conta.

Desse convite nasceu uma das mais aclamadas séries da história da televisão, aquela que começava com o caso do homicídio da adolescente Laura Palmer e culminava numa narrativa misteriosa, de contornos sobrenaturais, à medida que a investigação do agente do FBI Dale Cooper (o actor Kyle MacLachlan) avançava e as estranhas histórias dos habitantes da cidade se revelavam.

"Em termos televisivos, o senso comum diz-nos que Twin Peaks nunca deveria ter acontecido. Foi tão fora da norma do que era a televisão na altura que parecia ser improvável que conseguíssemos sobreviver na atmosfera criativa de então."
Frost e Lynch sobreviveram, sim, mas apenas durante duas temporadas (1990 e 1991). Depois de, por imposição dos produtores, ter sido revelada a resposta à pergunta "Quem matou Laura Palmer?", no 7º episódio da 2ª temporada, as audiências começaram a cair, o que levou ao cancelamento da série.

Um romance ou um arquivo?
Passados 25 anos, e com a série prestes a regressar à televisão, chegou às livrarias A História Secreta de Twin Peaks, o 12º livro de Mark Frost. "Escrevi-o depois de termos acabado os novos episódios. Foi bom voltar a trabalhar com o David e revigorar aquele mundo nas nossas mentes", diz. O romance tem a forma de um arquivo de ficheiros confidenciais, com recortes de jornais, relatórios do FBI e outros documentos.

"A série tinha tantas personagens distintas que quis encontrar uma forma de lhes dar voz, e esta colecção de documentos parecia oferecer a melhor oportunidade de o fazer", explica o autor.

O outro motivo desta decisão pouco ortodoxa foi permitir a Frost criar uma história no tempo presente: "Quis colocar o leitor no mesmo lugar do protagonista. Penso que foi uma boa maneira de abordar o material e conti- nuar consistente com o tom e a natureza da série original."

No livro, figuras reais (como o fundador da cientologia, L. Ron Hubbard, ou o antigo Presidente Richard Nixon) e acontecimentos históricos (como o caso Roswell, em 1947, que durante décadas gerou teorias da conspiração envolvendo OVNI) ganham lugar no universo de Twin Peaks.

Para contar a história desta pequena cidade no Noroeste dos Estados Unidos, o autor recuou dois séculos: o livro arranca em 1805, com excertos de um diário escrito à mão (e assim dado a ler) por William Clark e Meriwether Lewis - exploradores que desbravaram caminho pelos Estados Unidos, entre 1804 e 1806, cartografando o território e estudando a fauna e a flora. Foi "uma forma de aprofundar as raízes daquele lugar e das suas pessoas", diz Frost, observando que era uma intenção que tinha há muito tempo: "Queria fazê-lo quando trabalhámos no material original, mas na altura não nos deram a oportunidade de o fazer."

De volta à televisão
A nova temporada, com estreia prevista para este ano - e que conta de novo com a música original de Angelo Badalamenti -, expande o universo Twin Peaks, mas, ao contrário do texto, a narrativa não vai ao século XIX. "Quisemos levar a série para o presente e incluir acontecimentos históricos que entretanto se passaram, mas não sei se se pode dizer que o livro seja, per se, uma introdução". Então, de que forma pode este livro ser "útil" para os fãs? "Por um lado, permite que quem não conhece aquele mundo se familiarize; por outro, evita que as pessoas que já o conheciam mergulhem agora de cabeça na nova série."

A Showtime encarrega-se da produção, o que poderá parecer estranho numa época em que a Netflix se transformou no poiso privilegiado dos melhores criadores (além de ter ressuscitado outras séries populares, como Gillmore Girls, Full House e Arrested Development), mas houve um factor decisivo que levou Frost a preferir trabalhar com um canal tradicional: "Sentimos que esta refeição seria melhor se fosse servido um prato de cada vez, em vez de se comer logo tudo" - uma referência ao facto de a Netflix disponibilizar de uma assentada todos os episódios das séries. Ainda assim, não subestima o poder da Internet: "Na série original, houve claramente um fenómeno, que foram as chamadas conversas de café, em que as pessoas no dia seguinte se juntavam para falar do episódio anterior - e, desde então, em certo sentido, as redes sociais substituíram o café."

Sobre os percalços na produção, nem uma palavra. "Honestamente, não posso falar sobre isso", diz, referindo-se ao abandono de David Lynch, por considerar o dinheiro disponível insuficiente para fazer a série como ele sentia que deveria ser feita.

O legado
Com o seu peculiar agente Cooper, que adorava um bom café, a senhora que carregava sempre consigo um tronco de árvore e a entidade demoníaca que possuía os habitantes da cidade, Twin Peaks deve parte do seu estatuto de culto ao carácter inovador e bizarro.

Seria justo dizer que abriu caminho a séries mais recentes, como Lost, Os Sopranos ou The Wire, com narrativas complexas que deram origem à ideia de uma "época de ouro da televisão americana". Porém, Twin Peaks não costuma ser incluída neste rol: "Sempre achei que tivemos a nossa quota- -parte de crédito e muita gente diz que nós abrimos a porta às séries que vieram depois, mas a cultura tem memória curta..."

Certo é que o nome de Frost, apesar do vasto currículo (ver caixa acima), ficará para sempre associado a Twin Peaks. Nada que o apoquente: "Quando se tem o nome em algo que teve este impacto, uma pessoa acaba por fazer as pazes com a ideia de que essa será a primeira linha do seu obituário." 

Artigo originalmente publicado na edição nº 662 da SÁBADO, a 5 Janeiro 2017.

---