O centro onde alunos e médicos treinam em doentes a fingir
No Centro de Simulação NOVA-CUF aperfeiçoa-se a técnica para eliminar falhas, treina-se como comunicar más notícias e também como reagir a lesões no futebol.
Uma criança de cinco anos foi transportada de urgência pelo INEM das Caldas da Rainha para o Hospital CUF Descobertas. A mãe levou-a para as urgências depois de um dia com febre alta - 39,5ºC - que não baixava com antipiréticos e de ter sentido dificuldade em acordá-la de manhã. O rapaz tem pintinhas no peito e os pais são negacionistas das vacinas. "Este é o ambiente em que vão atuar", explica Pedro Garcia, diretor clínico do Centro de Simulação NOVA-CUF, no Hospital CUF Tejo.
Quatro alunos do 5º ano de Medicina da NOVA Medical School rodeiam a maca com um manequim de alta fidelidade que simula as reações fisiológicas de uma criança doente. "Tu és a chefe de serviço de pediatria da CUF Descobertas, tu és uma interna de pediatria do 5ºano, tu és enfermeira de urgência e tu és auxiliar do serviço de urgência", indica Pedro Garcia, que também é professor na NOVA Medical School.
A tensão arterial e batida cardíaca piscam num ecrã gigante, numa das paredes da sala, há vários tipos de máscaras de oxigénio, soros, e instrumentos que existem numa sala de urgências e até um carro de reanimação.
"Conseguimos dois acessos e colocamos soro a correr a ritmo elevado. Achamos que é um choque séptico", diz Pedro Garcia, simulando ser um paramédico da ambulância. "Mas perdemos um dos acessos - uma das veias rebentou", acrescenta. "A tensão é 45/32. Ele não está grande coisa", conclui. Os alunos ficam presos ao chão. "Vamos lá! Calcem as luvas! O doente está mal!", incentiva Pedro Garcia.
Este é apenas um dos cenários criados no Centro de Simulação NOVA-CUF, situado no Hospital CUF Tejo, em Lisboa, o primeiro em Portugal a receber a acreditação pela Sociedade Europeia de Simulação Aplicada à Medicina, que atesta a qualidade da plataforma tecnológica, equipamentos e infraestrutura.
Para além de estudantes de Medicina, as quatro salas de simulação servem também para médicos já com experiência que queiram aperfeiçoar várias técnicas, por exemplo, a cirurgia de laparoscopia. "Nos simuladores de laparoscopia realiza-se uma prática deliberada, como faz o Cristiano Ronaldo", explica Pedro Garcia. "Repete-se o procedimento e reparte-se a técnica em pequenas tarefas para melhorar cada uma delas."
O simulador estabelece critérios e dá feedback ao médico. "Quanto tempo demoraria uma sutura, se o gesto que realizou é o adequado", exemplifica Pedro Garcia. E também se pode utilizar peças animais para que o cirurgião sinta a tração dos tecidos.
Simular na Cidade do Futebol
No centro da sala, deitado numa maca está um manequim com a camisola da seleção nacional de futebol. "Os manequins conseguem transmitir muito do que um doente real pode transmitir: tem frequência cardíaca, pode ser suturado, receber soro, ser algaliado e receber um cateter central", enumera o diretor clínico do centro.
O objetivo é criar um realismo psicológico. "A imersão do estudante ou do médico depende de como criamos os cenários", diz Pedro Garcia. "O objetivo é que olhem para o manequim como se fosse um doente real."
É também no centro que se treinam competências de trabalho em equipa, fundamentais em salas de reanimação e de cuidados intensivos, onde intervêm ao mesmo tempo médicos, enfermeiros e auxiliares. "Utiliza-se a técnica de Crisis Resource Management, também usada na aviação para evitar falhas de comunicação", explica o diretor clínico.
A camisola da seleção de futebol foi oferecida após uma formação com as equipas médicas. "Treina-se a abordagem à via aérea, ao traumatismo craniano e a colocação do colar cervical", diz. Os cenários são testados também em campo na Cidade do Futebol, na Cruz Quebrada, Oeiras, com atores que aprendem como reagir a uma condição médica.
"A morte do [benfiquista] Miklos Feher em campo [em 2004] deu origem à discussão sobre o que correu mal", diz Pedro Garcia. "Quando um jogador cai em campo é preciso saber distinguir entre uma paragem cardíaca e uma convulsão atónica [onde não ocorrem tremores], por exemplo", acrescenta. "A forma do corpo cair é muito semelhante. Mas na convulsão mantém-se a respiração e a pulsação."
Há ainda simuladores de imagiologia, como a ecografia obstétrica. "Temos o simulador do ecógrafo e um robô que transmite a sensação na mão do médico do grau que tem de carregar na barriga da grávida para sentir os ressaltos do feto e para ver o coração", diz Pedro Garcia. Até aqui era conhecimento só obtido com anos de experiência. "A simulação encurta em anos a curva de aprendizagem", garante o diretor clínico.
São também vitais o bom uso da imagiologia usada em incidentes cardíacos. "O tempo de reação em restabelecer a circulação sanguínea reduz possíveis sequelas", explica Pedro Garcia.
Más notícias
No centro treina-se como comunicar más notícias, sobretudo na área da oncologia. Uma das salas mimetiza uma consultório e os médicos interagem com atores-pacientes. "Treina-se a capacidade de empatia e a forma de explicar a patologia claramente sem jargões médicos."
A relação estabelecida entre médico e doente é fundamental no tratamento da doença. "A adesão à terapêutica depende muito da confiança que se cria", confirma Pedro Garcia.
Na última sala, há um espelho que ocupa toda uma parede. É um vidro unidirecional e do outro lado está a sala de comando onde se avalia a reação de equipas de reanimação e cuidados intensivos. "Desta forma, os formandos não sentem a presença do formador e é possível sentirem que estão mesmo no seu local de trabalho", diz Pedro Garcia.
Todos os cenários são testados e avaliados o tempo de resposta e a capacidade de liderança em equipas. "Normalmente, numa situação de reanimação é quem está a ventilar que lidera e indica o que cada um tem de fazer." A precisão é vital para o doente e para a equipa médica.
"Por exemplo, numa reanimação com desfibrilhador temos de dizer todos os passos: ‘ponho a carga’, ‘está a carga’, ‘eu estou afastado’, 'o oxigénio está afastado’, ‘toda a gente está afastada’, ‘vou desfibrilar’", exemplifica. "Isto é treinado até ser automático."
Na sala de simulação com a criança inanimada, os estudantes de Medicina duvidam do que fazer. "Temos de entubar?", perguntam ao professor. "Eu cá não sei, sou o pai e sou advogado", responde Pedro Garcia.
O nível de oxigénio marca apenas 87%. "Quantos litros por minuto?", pergunta o professor. "Três litros?", responde uma das alunas. "Sim. Atenção que mais de três litros por minuto numa criança pode lesionar a mucosa." O oxigénio volta a subir.
É preciso aumentar a dose de soro. "Mas perdeu o outro acesso. Não encontram veias. O que fazem?", desafia Pedro Garcia. "Temos de fazer um acesso intra-ósseo", respondem os alunos, enquanto procuram a ferramenta que se assemelha a um pequeno berbequim, para furar com uma agulha a tíbia e assim fazer chegar o soro à medula óssea.
"Rápido! O doente está mal!", grita Pedro Garcia. Os alunos reagem, com sorrisos nervosos. É só uma simulação. Mas em breve, quando estiverem a fazer o internato, poderá ser bem real.
Médicos aprendem a operar com simuladores
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