Joaquim Vieira: "Nunca houve uma relação afetiva, muito menos sexual, entre Salazar e D. Maria"
Fria e disciplinadora, a governanta de Salazar dedicou-lhe a vida. Começou a acompanhá-lo em Coimbra e durante 50 anos esteve sempre ao seu lado. O livro que conta a sua história, escrito pelo jornalista Joaquim Vieira, sai grátis com a SÁBADO a 6 de maio.
O livro foi publicado pela primeira vez em 2010, após 16 meses dedicados à investigação e à escrita. Agora, a convite da SÁBADO, o jornalista e escritor Joaquim Vieira voltou a mergulhar em A Governanta – D. Maria, Companheira de Salazar, para uma reedição que traz informação atualizada. Dividido em dois volumes, sai gratuitamente com a SÁBADO nas edições de 6 e 13 de maio. Antes de ler o livro, pode ficar a conhecer nesta entrevista alguns aspetos sobre a relação de quase 50 anos entre Salazar e a sua governanta, Maria de Jesus, conhecida simplesmente por Senhora Maria ou Dona Maria.
Para escrever este livro consultou várias fontes de informação, de cartas a livros e artigos de jornal, e falou com várias pessoas. Quais foram as revelações mais surpreendentes?
O que me surpreendeu mais foi a noção de que havia uma certa influência que a D. Maria acabava por ter sobre as políticas de Salazar. Como se sabe, o Salazar era quase um eremita, um misantropo, que praticamente não saía do seu refúgio, a residência oficial em S. Bento. E a D. Maria era a antena que ele tinha com a sociedade portuguesa, porque ela saía, ia ao mercado, auscultava o sentimento do cidadão comum, dos consumidores, concretamente quanto aos preços e fornecimentos dos géneros alimentares e depois essa informação que seguia para dentro de S. Bento acabou por ter influência em algumas decisões de Salazar, concretamente na introdução de algumas variantes de arroz no consumo doméstico, que era aquilo que os portugueses preferiam mas não estava acessível na altura.
Como era a relação de Salazar com D. Maria? Ela era quase como uma irmã ou uma tia?
É claro que a relação amo/governanta nunca deixou de existir, e portanto Salazar colocava D. Maria no seu patamar, que era claramente inferior ao dele. Aliás, e ao contrário dos rumores que correram, nunca houve uma relação afetiva, muito menos sexual, entre ambos. Mas, ao longo do tempo, estabeleceu-se, de certa forma, aquilo que eu chamo de relação familiar adotiva, uma família de empréstimo que Salazar acabou por ter, porque ele nunca casou. No entanto, houve duas meninas que, devido à situação de carência dos pais, acabaram por ser "adotadas" por Salazar, ficaram a viver na residência oficial juntamente com Salazar e D. Maria. Essas meninas eram familiares da D. Maria, e portanto constituiu-se uma espécie de família adotiva, com Salazar na figura paterna, e D. Maria na figura materna, e depois aquelas que seriam as duas filhas, chamadas de pupilas de Salazar. Cresceram lá, uma até casou na própria residência oficial. Aliás, uma delas, a quem Salazar chamava Micas, ainda estava viva quando eu escrevi o livro, e portanto tive oportunidade de falar com ela. Contou-me muito daquilo que era a vivência quotidiana, e as informações que me transmitiu são preciosas para traçar o quadro de como era essa família adotiva em S. Bento.
Houve rumores de uma paixão secreta de D. Maria por Salazar. Nunca passou disso?
Da parte dela há uma dedicação sem limites a Salazar, e secretamente talvez estivesse apaixonada por ele. Mas é claro que devido aos preconceitos da sociedade na altura era impossível ela declarar essa atração. Isso foi uma coisa secreta, e o que quer que fosse que tivesse existido, ela guardou-o sempre para si. Agora, a sua admiração, a sua defesa a todo o custo de Salazar, das suas políticas e da sua atuação como governante, isso ela assumiu durante toda a sua vida.
D. Maria começa a acompanhar Salazar em Coimbra, e mantém-se com ele quase 50 anos. Através dessa relação poderá traçar-se um retrato do Estado Novo?
O que a relação entre Salazar e D. Maria nos mostra é um certo retrato da sociedade conservadora que existia no tempo da ditadura, um pouco provinciana, um pouco puritana. Eles não são cosmopolitas, não estão preocupados com o exterior, com o mundo, com o estrangeiro, com o progresso, com o desenvolvimento. É tudo muito calmo, muito tranquilo, aquilo que Salazar até referiu num discurso: "o modo habitual de viver". E isso é o espelho do que foi o salazarismo, do Estado Novo. Claro que o país não era só isso, e nem toda a parte alinhava com esse tipo de pensamento, e com essas ideias e essa visão conservadora, mas ali estava aquilo que se pretendia que fosse a visão dominante da sociedade portuguesa e que Salazar tentou impor aos portugueses - e impôs, de facto.
Na residência oficial havia criação de coelhos e galinhas, horta e pomar. Era uma imposição de D. Maria ou Salazar também gostava disso?
Era mais uma mania de D. Maria, talvez o Salazar não apreciasse muito, embora o Salazar também tivesse raízes rurais. Ele mantinha uma ligação à terra, ao Vimieiro, em Santa Comba Dão, tinha uma propriedade que se preocupava em cuidar, ia produzindo vinho. Essas raízes nunca desapareceram, e de certa forma eles trazem a província para a cidade. Mas aquela coisa de ter a criação de animais, a horta e o pomar, era ideia de D. Maria. Aliás, a certa altura as galinhas eram tantas que eles não conseguiam consumir os ovos todos, e vendiam-nos ao hotel Avis, que na altura era o único hotel de luxo em Portugal. O Salazar achava que isso era um bocado de mais, mas, lá está, é das tais coisas em que se pode dizer que a mulher impõe a sua vontade ao homem dentro de casa. Portanto, ele, e apesar de conhecermos o seu lado autoritário, tinha em casa uma mulher que de certa forma era mais autoritária do que ele, mandava nele nesse aspeto da vida quotidiana e doméstica. E ele submeteu-se e aceitou esse tipo de vivência.
As pessoas tentavam chegar a Salazar por intermédio de D. Maria? Faziam-lhe pedidos de emprego, nomeações ou mesmo de dinheiro?
O sistema da cunha era um sistema que estava altamente difundido na sociedade portuguesa. Pagava-se para muita coisa, para um pequeno favor dos funcionários públicos numa conservatória, pagava-se por fora algum dinheiro para se acelerar processos, como uma passagem de certidão. Essa pequena corrupção era praticada intensamente e ninguém se preocupava com isso. E também havia a prática da cunha, que era a influência pessoal, para encontrar um emprego, para poder beneficiar de uma promoção ou de outro tipo de coisas que pudessem trazer vantagens e benefícios para aqueles que as procuravam. Era algo comummente aceite e penso que o próprio Salazar não se terá chocado muito com isso.
E D. Maria ajudava as pessoas?
As pessoas percebiam, ou pelo menos intuíam, que falando com D. Maria era possível passar recados e fazer pedidos a Salazar. Ela não dizia que não, e portanto as pessoas escreviam cartas. A maior parte das cartas que foram escritas para ela - e algumas para o próprio Salazar -eram de pessoas que nem sequer os conheciam, mas que apresentavam as suas credenciais, eram apoiantes do Estado Novo, tinham feito isto ou aquilo a favor de Salazar. Funcionava como um cartão de visita que eles achavam que os poderia beneficiar na satisfação do pedido que apresentavam. E a D. Maria não deitava essas cartas ao lixo, ficava condoída com algumas situações que lhe eram relatadas por alguns dos peticionários, e depois, a seguir ao jantar, na residência de S. Bento, era capaz de lhe dizer: "Já viu esta situação desta mulher ou deste homem, que está com este drama, se calhar é preciso fazer alguma coisa para minorar isto". E isso era enviado ao serviço respetivo, ao pelouro ou ao setor governativo ou administrativo que tinha aquele assunto específico em mãos, e uma coisa que vinha do chefe do governo, se calhar tinha algum peso para influenciar uma tomada de decisão favorável. Agora, o que é que aconteceu a todos esses pedidos, não sei. Muitos deles ficaram simplesmente no arquivo e não aconteceu absolutamente nada, mas admito que em outros casos esse circuito paralelo possa ter dado uma forcinha, como se diz, para resolver os problemas. Não se pode dizer que fossem casos de corrupção escandalosa, nada disso. Era apenas para resolver situações particulares da vida de cada um.
D. Maria poderá ter ajudado familiares e amigos?
Sim, pode-se dizer que ela puxava pelos familiares, para tornar a sua situação mais confortável, para resolver alguns pequenos problemas. Não quer dizer que houve um familiar dela que por essas cunhas tenha subido a um grande cargo no Estado Novo, isso não aconteceu, mas um cunhado que fosse contínuo e que estava num serviço que não lhe agradava poderia ter uma pequena promoção para algo que fosse superior. Mas sempre dentro do mesmo nível profissional, não tenho conhecimento de grandes saltos que a influência de D. Maria pudesse ter causado na carreira das pessoas. Atenção, não quer dizer que isso não possa ter acontecido, mas naquilo que eu investiguei, não apurei nada desse género. Agora, que ela poderia tentar passar o recado, tentar influenciar de alguma maneira Salazar, ou alguém da administração pública, isso pode ter acontecido, porque era realmente a forma como o regime funcionava em Portugal.
Essa relação de D. Maria com Salazar serve também para traçar o perfil do ditador. Fala no livro de alguns episódios, os dois são muito poupados, andavam com a roupa remendada e puída de tanto uso…
A vida de D. Maria e de Salazar é de tal maneira indissociável, que é impossível não fazer o percurso de vida, a biografia de D. Maria, sem falar um pouco do que foi o percurso de vida de Salazar até ao fim, porque ela acompanhou-o até à morte. Todos os passos que ele deu foram acompanhados por ela. É evidente que ela não participava nas grandes decisões políticas, mas essas coisas refletiam-se, de alguma forma, em S. Bento. Houve sempre um grande paralelismo entre a vida de um e a vida de outro. Desde a primeira vez que se cruzaram em Coimbra até ele ter saído de S. Bento num caixão, a D. Maria esteve sempre ao lado dele.
No livro, a Micas caracteriza D. Maria como uma pessoa que praticamente não mostrava afetos.
Sim, era uma pessoa fria, dura, implacável, muito exigente, disciplinadora… e impunha, digamos assim, esse tipo de visão e de comportamento a toda a gente que estava com ela. E quem prevaricasse era punido de forma severa. Era quase um mestre-escola no sentido mais tradicional do conceito, só lhe faltava ter uma régua na mão. Mas ela impunha de facto essa disciplina, porque havia as criadas, havia as pupilas, e ela era severa para toda a gente. Até os próprios agentes da PIDE, que faziam a segurança a Salazar, os contínuos, todo o pessoal menor, ela era dura e implacável com todos. Era muito pouco afetiva. Outra imagem que possamos ter é de uma madre superiora de um convento no século XIX, com toda aquela visão retrógrada e toda a disciplina que impõe a todas as freiras. Essa é uma ideia que eu tenho. Não a conheci, mas falei com muitas pessoas que a conheceram e que me transmitiram de facto esse retrato.
Com o tempo, D. Maria também foi melhorando, foi ficando mais requintada, até teve lições para poder tirar o passaporte e ir ao Brasil visitar um dos irmãos…
Sim, terá tirado a quarta classe dos adultos, como se dizia antigamente, que era uma forma facilitada de dar o mínimo de formação escolar a pessoas que não tinham ido à escola, também para disfarçar um pouco o grande índice de analfabetismo que existia em Portugal. Ela foi uma dessas pessoas que tiveram o mínimo de lições para ao menos poder ler e escrever, e escrevia de uma forma um pouco atabalhoada. Não aprendeu línguas, e tinha muita dificuldade em comunicar com pessoas que não falavam português, mas esse era um problema que não se punha no quotidiano. Só se pôs uma vez, com a jornalista francesa Christine Garnier, uma paixão de Salazar. Ela veio cá entrevistá-lo e fazer um livro sobre ele. E como a D. Maria tinha aquela paixão assolapada por Salazar, ela desconfiava muito das paixões que ele tinha, ou das relações femininas, e tentava sabotar essas ligações, ou pelo menos tentar que não se prolongassem muito no tempo.
Mas com Christine Garnier ela foi mais simpática.
Sim, cultivou com ela uma relação que se pode dizer afetuosa. Foi uma exceção na relação dela com outras mulheres, e elas comunicavam por gestos, pois nem a D. Maria falava francês, nem a Christine falava português, e entendiam-se dessa maneira. Foi muito curioso porque a própria Christine convidou-a para ir a Paris, visitá-la, e ela foi. Foi uma das poucas viagens que D. Maria fez na Europa. Também foi a Roma ver o Papa. Ela era muito católica, e uma vez o embaixador de Portugal no Vaticano, o José Nozolino, grande amigo de Salazar, conseguiu organizar uma audiência privada com o Papa e ela foi ao Vaticano. Mas a viagem a Paris deu-lhe um certo ar cosmopolita que ela nunca teve, e vemos a D. Maria em Paris, bem vestida com um casaco elegante, o que é absolutamente surpreendente em relação à indumentária que costuma usar quando está em S. Bento.
D. Maria acabou por se tornar famosa, porque passaram a sair fotos suas na imprensa.
Era aquilo a que os portugueses tinham direito como informação, que era muito pouco. Mas criou-se ali um certo mito da D. Maria, quando saiu esse furo jornalístico, que foi uma revista ilustrada ter publicado a imagem dela juntamente com a pupila, a Micas, com o título: "Esta é a D. Maria". A foto foi tirada quando estavam a fazer as obras de adaptação do palacete de S. Bento, para onde Salazar iria morar (em 1939). E de facto aquilo foi uma revelação para os portugueses.
São atribuídos possíveis envolvimentos amorosos a Salazar, dois deles foram com a jornalista Christine Garnier ou com a infanta Filipa de Bragança. Ele era um sedutor?
Sim, Salazar era um sedutor. A sua própria posição de chefe do regime tornava-o, só por si, um sedutor. Nestas alturas pode-se citar a frase de Kissinger, que diz que "o poder é afrodisíaco". E realmente Salazar exercia um fascínio muito grande sobre as mulheres, não só por ser o chefe do Estado Novo, mas também pela sua pose, pela sua atitude, pela sua elegância, pela sua fleuma. Era alguém a quem não impressionavam as confusões que existiam no mundo e mantinha sempre uma atitude calma, tranquila, respondendo sempre da maneira que queria às situações e coisas. E isso também criava uma certa aura de mistério que tornava a figura de Salazar muito atraente. E de facto Salazar teve muitas adoradoras, muitas mulheres que andavam à volta dele. Como se sabe, nenhuma conseguiu grande coisa, mas esse património das relações de Salazar com o elemento feminino foi algo que ficou, foi uma coisa que fez parte intensa da sua história.
Como foi a vida de D. Maria depois da morte de Salazar?
A vida dela praticamente acabou. Ela considerou que tinha terminado a sua missão na terra e portanto não havia mais nada a fazer e limitou-se a levar uma existência apagada, triste, a viver talvez um pouco das recordações do passado - embora tenha havido pessoas que me disseram que ela não gostava de falar do passado, guardava as melhores recordações para si. Mas, de facto, todo o seu objetivo de vida tinha sido tomar conta de Salazar, e a partir do momento em que já não tinha Salazar, para ela a vida já não fazia sentido e deixou-se ir, sem ter tido grandes prazeres nessa vida que teve mais liberta, porque estava sozinha, tinha mais autonomia, ia almoçar com este e com aquele, falava com os amigos de antigamente, os que tinham sido amigos de Salazar, as visitas de S. Bento, mas não mais do que isso. Não gozou a vida naquele conceito que temos hoje de gozar a vida, simplesmente deixou-se ficar até desaparecer.
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