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As pontas soltas do "estranho" caso do sem-abrigo condenado a pagar €11 mil à Câmara de Lisboa

Luana Augusto 13 de maio de 2025 às 07:00

Um homem foi condenado a pagar €11 mil à Câmara de Lisboa, mas ativistas responsáveis pelo ato de vandalismo garantem que o sem-abrigo não esteve envolvido. Vídeo comprova exatamente isso, mas não foi tido em conta pela justiça.

Em janeiro deste ano um sem-abrigo foi condenado aindemnizar €11 milà Câmara Municipal de Lisboa, mais €3.500 de multa, pela alegada vandalização da fachada do edifício municipal, que teve lugar em dezembro de 2023. Na altura, um agente da PSP disse ter apanhado o indivíduo em "flagrante delito", mas um comunicado do Coletivo pela Libertação da Palestina, da Greve Climática Estudantil e da Climáximo, assim como um vídeo partilhado nas redes sociais, mostrou o contrário. O caso deixa agora algumas pontas soltas.

A detenção

DRA

Um vídeo de apenas 58 segundos, publicado nas redes sociais do Coletivo pela Libertação, da Greve Climática Estudantil e da Climáximo mostrava, em dezembro de 2023 quatro pessoas encapuzadas e com roupa larga a pintar a fachada da Câmara Municipal de Lisboa com tintas vermelhas, onde escreviam a palavra "genocída" e erguiam uma tarja onde se lia: "Palestina livre". A ação durou alguns segundos, mas um agente da PSP da esquadra do Aeroporto de Lisboa, que em momento algum aparece no vídeo, disse ter apanhado um sem-abrigo em "flagrante delito".

"No vídeo vê-se o crime a ser cometido e a determinado momento as pessoas a dispersarem a correr. Não houve detenção em flagrante delito como foi mencionado e, por isso, o agente mentiu ao dizer que apanhou o sem-abrigo em flagrante delito", garantiu à SÁBADO a advogada Leonor Caldeira que teve acesso ao processo.

Leonor Caldeira, que considerou o processo como sendo bastante "estranho", diz também não compreender o interesse de um sem-abrigo neste tipo de protestos pró-Palestina. "Pessoas como estas têm outras preocupações." Contudo, a verificar-se, a advogada defende que o agente não cumpriu de qualquer das formas com o seu dever. "A estar lá, o agente tinha de dizer que havia mais pessoas envolvidas, mas não o fez."

O vídeo

Além do momento da detenção relatado, este processo deixa ainda uma questão: como é que o vídeo não foi tido em conta pela justiça?

Apesar do vídeo ser do interesse da defesa e do acusado, em momento algum este elemento de prova, que mostra o momento em que se deu este ato de vandalismo, foi tido em conta pela justiça. O julgamento baseou-se essencialmente no depoimento do único agente que disse ter apanhado o indivíduo em "flagrante delito". 

"A prova principal era este vídeo e não uma prova testemunhal. Um vídeo é sempre uma testemunha mais credível", afirma. "Este vídeo que circula na internet podia ter ilibado esta pessoa ou contrariar a única testemunha, mas não foi tido em consideração."

Segundo Leonor Caldeira, o acusado seria a "única pessoa" que podia apresentar este vídeo como prova, mas o mais provável é que nem saiba que está sequer acusado e condenado ao pagamento de um total de mais de €13.500.

Horário

Os próprios coletivos pró-Palestina chegaram até a denunciar "incoerências" neste processo. Uma deles está relacionada com a hora a que o agente da PSP disse ter presenciado os factos.

Às 7h29 de 22 de dezembro de 2023 era enviado um comunicado às redações dos vários meios de comunicação social a detalhar esta ação, com imagens e vídeos da mesma. No entanto, no processo é referido que o agente em questão encontrava-se a fazer uma ronda ao local pelas 7h30 quando encontrou o indivíduo a escrever e grafitar a fachada, tendo resultado isto na sua detenção.

Agentes condecorados

Cerca de um mês após a ação de detenção, o presidente da Câmara de Lisboa decidiu condecorar os dois principais agentes envolvidos nesta ação - Luís Rodrigues e Germano Silva - com a Medalha Municipal de Bons Serviços.

Leonor Caldeira vê este episódio como uma tentativa de demonstração de soberania. "Há aqui uma vontade de mostrar serviço. É quase a coisa perfeita. Algo do género: 'Olhem para nós, como identificámos os malfeitores."

Como poderá um sem-abrigo pagar €11 mil?

Segundo Leonor Caldeira, é provável que o sem-abrigo em causa nem saiba que foi julgado e condenado a uma multa e uma indemnização num valor total de mais de €13.500 - 10.855 euros de indemnização pedidos pela autarquia, mais uma multa de 2.730 euros. A advogada vê, assim, este caso como um "escândalo".

"Isto é completamente absurdo. O homem nem deve saber que foi julgado", lamenta.

Mas como poderá um sem-abrigo pagar €11 mil? "Num outro caso haveria a penhora de bens, mas neste caso, tendo em conta que se trata de um sem-abrigo, o homem não deve ter bens nem dinheiro para a indemnização. Há, por isso, casos de pequenos crimes em que quando a multa não é paga é substituída por prisão."

Leonor Caldeira não sabe se irá ser aplicada prisão neste caso, mas explica que, apesar do paradeiro deste homem ser desconhecido, as autoridades podem encontrá-lo através das impressões digitais. "Nos autos não há uma fotografia dele, mas há impressões digitais. Ele foi identificado pela polícia através desta via. A PJ tirou uma impressão digital a este luso-brasileiro, e depois extraiu-se o registo criminal."

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