Sábado – Pense por si

Nuno Rogeiro
Nuno Rogeiro
20 de fevereiro de 2016 às 08:00

O princípio do caos

O inferno da Síria parece demasiado longínquo? Olhem outra vez. O problema vai acabar por nos tocar, com o mundo inteiro. Por isso é preciso continuar a interpretar o caos louco, que é o caso local

Lembro-me. Estava no Líbano em Abril de 2011, quando explodiu, em sangue, a Primavera Árabe na vizinha Síria. Os protestos populares tinham começado no mês anterior, primeiro em Damasco, depois em 10 cidades. E espalharam-se. Eram, no berço, sobretudo reclamações políticas de "democracia e liberdade". Mas o regime do Presidente Assad não quis partir em paz. Teve um instinto assassino, como o do seu pai: apontou o dedo a "agitadores externos", e começou uma larga operação militar contra os contestatários.Muita água passou entretanto debaixo das pontes. Além das centenas de milhares de mortos e dos milhões de refugiados, a história trágica é a da radicalização das antigas posições e oposições ao sistema político do Partido Baath, e a do endurecimento deste.Se em 2011 havia muitos moderados e "constitucionalistas", que desejavam uma mudança sem violência e sem revolução, hoje temos sobretudo "menos e mais radicais".É preciso olhar, no meio do caos sírio, os detalhes da tragédia. O regime é apoiado por milícias territoriais que representam a minoria alauíta, e pelos aliados internacionais relevantes: o partido xiita Hezbollah, do Líbano, os Guardas da Revolução iranianos e as forças russas. Contra si tem várias "camadas" de rebelião. O já chamado Exército Livre da Síria, auxiliado pela Turquia, pelos países árabes e pelo Ocidente, é suposto agrupar os moderados, mas tem perdido terreno. Há ainda a Frente Islâmica, que às vezes se associa e dissocia do ELS, e que reúne "radicais" sem planos de jihad global. Estas "federações" possuem centenas de grupos aliados, subordinados e coordenados, mas que às vezes lutam sozinhos, e só na dimensão de uma aldeia, ou de um conjunto de povoações, ou por uma ponte, um vale, uma fábrica, uma refinaria. Depois chegam os jihadistas certificados. Aqueles que querem a guerra santa contra os ímpios, não só em Damasco, mas em toda a região, e sonham com o Califado. Trata-se sobretudo da Frente Al-Nusra, dividida entre uma facção que se integra na Al -Qaeda, através do chamado Comando Khorasan e outras entidades. Por fim desembocamos nos terroristas de marca, em torno do Dito Estado Dito Islâmico, ou Daesh. Por fim? Não exactamente. Há ainda os curdos e as milícias turcomanas. Concentram-se no Norte, na faixa que vai do mar à fronteira com o Iraque. Enquanto os turcomanos são essencialmente "turcos da Síria", os curdos vivem em boa parte hostis ao regime de Ancara, sobretudo aqueles que aderiram ao chamado Partido da Unidade Democrática (PUD), o qual possui uma milícia armada. Agora todos acham que o Daesh, que entretanto se expandiu para o mundo e para a imaginação, é o inimigo principal. Mas quer a Turquia, quer a Rússia, quer os EUA, quer o regime de Assad, possuem outros adversários "secundários". E já não falamos da Arábia Saudita e do Irão, divididos regionalmente noutras linhas, e hoje de lâminas aguçadas.Não há solução para a Síria com base nos desejos de um único poder. E sem solução para a Síria, a NATO e a União Europeia, por via da Turquia, Grécia e Itália (na "linha da frente"), hão-de penar.P.S. – A BBC fala, ambiguamente, nas "cartas secretas" de João Paulo II. Mas a correspondência não é secreta, e sim privada. Dá-se entre o Papa polaco e uma filósofa compatriota. Não é nem a reedição dos amores proibidos entre Martin Heidegger e Hannah Arendt, nem uma historieta cor-de-rosa. É um olhar profundo sobre a possibilidade de, como se diz, "uma amizade em Cristo". A intensidade não é para todos, mas comove.P.S.2 – O PCP começa a definir-se face ao Governo de coligação em papel. Não diz ainda que este é "neoliberal". Mas já não está lá o entusiasmo do primeiro beijo. No fundo, ou se é comunista, ou não se é.P.S.3 – Nuno Crato tem tomado uma atitude digna – e inteligente – face ao actual Executivo. Não critica nada em bloco, nem a olho, nem sem olhar.A banca zombiePassos Coelho diz que deixou o Banif "com lucro". O que adensa o mistério do que se passou nos últimos meses. E o que obriga a uma acareação. Por outro lado, crescem os rumores sobre manobras obscuras em relação a bancos em crise, ou em permanente estado de venda, com o regulador atarantado. A banca "nacional" parece ter finalmente batido no fundo. Os princípios foram-se, os meios estão-se a ir. Tudo isto acontece, para mal dos nossos pecados, numa altura de grande "volatilidade" no sistema creditício europeu, com os gigantes a revelarem pés de barro. Ouvi uma descrição sobre o assunto: "São como os mortos-vivos da série Walking Dead. Andam, mas já sem cérebro, e com as entranhas à mostra."Animalidades A fúria fundamentalista contra produtos tradicionais portugueses, como a alheira de caça e outros enchidos, dá que pensar. Em vez de colocar o acento tónico na defesa da excelência do alimento, e no apertado controlo da marca e da sua qualidade, prefere salientar os riscos de saúde de uma dieta irracional. Na verdade, por essa lógica, muitos bens seriam perversos, se consumidos em demasia, quotidianamente. Os novos talibãs gastronómicos esquecem-se de que o ponto é o do combate aos excessos. Claro que esta luta significaria educação e cultura. Lembrar a necessidade de moderação requer um discurso sofisticado. Recordar a batalha do equilíbrio necessita ponderação.Ora esta gente vive do alarido. Para reflectir Antony Beevor reescreve a história da última ofensiva do 3º Reich em Ardenas (Bertrand), e Andrew Morton especula sobre um alegado plano secreto para tomar o Reino Unido por dentro, em 1940, com Lisboa no meio. É 17 Cravos (Texto). Quanto a Vozes de Chernobyl (Elsinore), de Svetlana Alexievich, fala de uma catástrofe proibida. Já O Mundo Privado dos Presidentes dos EUA (Vogais), de Kate A. Brower, tenta transformar a política em voyeurismo. Mais útil para compreender a América é o clássico de Werner Sombart, escrito no fim do século XIX, Why is There no Socialism in the US?, que consegue encontrar-se na Amazon, mas nunca foi editado em Portugal. E vejam, no cinema, o delirante Zoolander 2 (na foto).

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