Sábado – Pense por si

Tiago Pereira
Tiago Pereira Psicólogo e membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses
21 de fevereiro de 2023 às 12:17

Sexta-Feira, 24 de Fevereiro – Dia da não-naturalização

Capa da Sábado Edição 5 a 11 de agosto
Leia a revista
Em versão ePaper
Ler agora
Edição de 5 a 11 de agosto

A compreensão do nosso comportamento e da forma como ele é influenciado pelo contexto determina a necessidade de que o investimento na construção da paz seja permanente.

Esta sexta-feira, 24 de Fevereiro, assinalamos o aniversário de dois momentos muito relevantes para pensarmos a Europa e o Mundo, no presente e futuro. Nove anos do afastamento forçado do governador de Sevastopol, maior cidade da Crimeia e maior porto do Mar Negro, e entrega da função a um represente russo, concretizando o início da ocupação da Crimeia. Um ano do início da segunda fase de invasão da Ucrânia pela Federação Russa, com o bombardeamento de várias cidades ucranianas, incluindo Kiev, e a invasão do território com meios terrestres. Duas fases, é certo que com diferentes reações (internacionais), de uma Guerra que desrespeita o direito internacional e os direitos humanos. De uma Guerra que muito desafia. Mas, como em quase tudo, de uma Guerra que corre o risco de ser naturalizada. 

Mas recuemos a quatro momentos. A 24 de Fevereiro de 2021, exatamente um ano antes do início da segunda fase desta Guerra, escrevia o primeiro texto desta rubrica "Ao Redor..." Chamei-lhe "Nós e os nossos Mundos" e nele escrevi que "procurar compreender o nosso comportamento – e os pensamentos (cognições) e sentimentos (emoções) a ele associados – e como este é influenciado e influencia o contexto que o determina, creio interessar ou mesmo fascinar a todas/os. Fez de mim psicólogo." Neste duplo aniversário evoco esta passagem na perspetiva do quão fundamental é enquadrarmos o comportamento e a tomada de decisão humana no seu contexto e em como este é profundamente influenciado pelo comportamento e tomada de decisão das pessoas. Termos isso presente é essencial para pensarmos o comportamento, do mais banal ao mais excecpcional. É essencial para pensarmos a Guerra. 

Mais tarde, a 30 de Dezembro de 2021, também no "Ao redor..." escrevi um texto sobre um desejo (meu) para o 2022 que aí viria. Chamei-lhe "Um desejo para 2022? Construirmos mais paz" e nele escrevi que "conforme sucede com a saúde mental, também a paz é comummente definida como a ausência de guerra. Creio que 2022 será um ano particularmente desafiante no que à paz diz respeito e que, também por isso, será importante que pessoal ou profissionalmente, em contexto privado ou público, conversemos sobre ela e disseminemos que, indo muito além da ausência de guerra, a paz representa a harmonia, a civilidade entre pessoas e comunidades e a serenidade, e que compreendê-lo será fundamental para a promovermos. Para a promovermos em Portugal, na Suíça ou nos Estados Unidos da América, não apenas na Síria, em Myanmar ou na fronteira da Ucrânia com a Rússia." Nele falava, também, da quebra progressiva de confiança nas instituições, na democracia e, particularmente, nas instituições e nas profissões que funcionam como mediadores sociais e do risco que isso representa no presente e para o futuro. 

Já há exatamente um ano, a 20 de Fevereiro de 2022, Zelensky escrevia na sua conta na rede social Twitter: "Defendemos a intensificação do processo de paz. Apoiamos a convocação imediata do GCT [Grupo de Contacto Trilateral] e um cessar-fogo imediato". Escreveu-o e informou Macron da situação no leste da Ucrânia e dos ataques das milícias separatistas. Enquanto isso, a Federação Russa negava qualquer intenção bélica e afirmava ter retirado parte do contingente da zona (tinha, pelo menos, 150.000 soldados junto à fronteira com a Ucrânia). Neste jogo de sinais e do simbolismo do mesmo, ressalta a ideia de que o passado pode mesmo encontrar as suas formas de se repetir, mesmo que isso nos pareça improvável e, particularmente, como a perceção do risco vai evoluindo e condicionando os nossos comportamentos. A sua análise e consideração nos processos de construção de paz ou, noutro exemplo, na promoção da saúde pública é essencial porquanto, por vezes, bons resultados ou indicadores positivos fazem com que a perceção de risco de determinado acontecimento / situação baixe tão consideravelmente que nos predispõe menos para determinadas iniciativas ou comportamentos de (auto) proteção ou, até, a acreditarmos ou não na sua possibilidade. 

Finalmente, recuemos a 2002 e à constituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) para recordar o seu preâmbulo e a mensagem de "que uma vez que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz". Recordemo-la para sublinhar o quão importante é procurar, activamente, combater a naturalização da Guerra como estado que se (pode) interioriza(r). Recordemo-la para que mantenhamos ativação e reação sobre o nosso redor e para que atitudes de não-complacência e de apoio à procura da resolução da Guerra não sejam desafiada pelas dificuldades (sócio-económicas, por exemplo) que dela resultam, conforme, ainda assim com alguma racionalidade, Putin e outras e outros líderes têm procurado que suceda. Isso o devemos, conforme nossa responsabilidade solidária moral, em primeiro lugar às ucranianas e ucranianos que muito sofrem com cada minuto mais de um contexto de Guerra, mas também a uma Europa e um Mundo de paz, de permanente e empenhada construção de paz e de permanente e empenhado reforço da cooperação, harmonia, civilidade e serenidade. Diria, também, de democracia, de confiança nas instituições e nas pessoas. 

A compreensão do nosso comportamento e da forma como ele é influenciado pelo contexto determina a necessidade de que o investimento na construção da paz seja permanente. Tal qual determina termos presentes que, sim, o passado pode encontrar formas de se repetir, particularmente quando muitos acreditamos no contrário, a partir exatamente da nossa baixa perceção de risco, geradora de menor envolvimento na preservação das instituições, da civilidade e da paz. Ainda, determina que tenhamos presente que tendemos a naturalizar quase todas as condições humanas, incluindo a Guerra, pelo que ativa e empenhadamente temos de o contrariar, não aceitando e não compactuando com as violações de direitos que a mesma comporta. 

Na verdade, aqui e ali, no Mundo ao redor, talvez seja importante lembrarmos Erasmo de Roterdão que, viajante e construtor de pontes entre povos, escreveu há mais de 500 anos no seu "A Guerra e a queixa da Paz" que se "formássemos um cálculo justo do custo da guerra e o da busca da paz, veríamos que a paz pode ser comprada a um décimo do custo dos cuidados, labores, problemas, perigos, despesas e sangue envolvidos numa guerra." Buscar a paz era, é e será sempre o caminho que nos aproxima da convivência entre povos e de um Mundo melhor. Lutemos por ela, pelas ucranianas e ucranianos. Por todas e todos nós.

Mais crónicas do autor
18 de dezembro de 2024 às 07:00

Um desejo para 2025? Protegermos e cumprirmos a universalidade dos Direitos Humanos

Fazer a nossa parte depende de os cumprirmos, através das nossas acções, contributo para acções de quem nos rodeia e para instituições que assentem nesses valores e que tenham a confiança da população para os prosseguirem, mesmo nos períodos em que isso possa ser mais difícil e desafiante.

04 de dezembro de 2024 às 07:00

Os contactos laborais fora do horário de trabalho: Um elogio ao limbo

Ferramentas simples como programar envios de emails ou de outras comunicações ou agendar reuniões onde se parte de um memorando já feito ajudam a "despacharmos" trabalho e são um importante contributo que, se todos adoptássemos mais, apoiaria significativamente a possibilidade de conciliação de todos

20 de novembro de 2024 às 07:00

O bem-estar, idiota

É estranho que, nas inúmeras e longas reflexões que vejo serem realizadas sobre a quebra de resultados escolares das crianças e adolescentes em indicadores internacionais ou em provas de aferição, raras vezes se discutam os níveis de bem-estar e o impacto que têm no seu envolvimento, motivação, nas aprendizagens e no seu desempenho.

06 de novembro de 2024 às 07:00

Empatia rima com Democracia

Os EUA e os seus períodos eleitorais nos últimos anos, particularmente os três que envolvem Donald Trump, são um profundo exemplo do impacto da empatia.

23 de outubro de 2024 às 07:00

Das televendas às aplicações digitais: o negócio à volta da vulnerabilidade e do bem-estar

Quem, com mais alguns anos que eu ou mais ou menos da minha idade, assistiu à emergência do fenómeno das televendas, não esquece os inúmeros e pomposos anúncios a produtos que prometiam mudanças profundas da nossa vida.

Mostrar mais crónicas

As 10 lições de Zaluzhny (I)

O poder não se mede em tanques ou mísseis: mede-se em espírito. A reflexão, com a assinatura do general Zaluzhny, tem uma conclusão tremenda: se a paz falhar, apenas aqueles que aprendem rápido sobreviverão. Nós, europeus aliados da Ucrânia, temos de nos apressar: só com um novo plano de mobilidade militar conseguiríamos responder em tempo eficaz a um cenário de uma confrontação direta com a Rússia.