A hipocrisia do mundo jurídico actual luso chegou a tal ponto que há que concluir que a presunção de inocência só vale quando o Estado quer, e que a inversão do ónus da prova está já consagrada, e em prática, cada vez com mais vigor, no processo penal português.
Tem estado dormente há um lustre uma polémica enorme na área da criminalidade económico-financeira. Tão relevante que fez intervir por duas vezes o Tribunal Constitucional, para verberar o legislador por querer introduzir no nosso sistema um odioso mecanismo que a título algum se poderia admitir: o crime de enriquecimento ilícito.
Sabemos, a maioria, quantos e quais foram os argumentos esgrimidos então pelo Tribunal Constitucional, estribado na forte opinião de uma mole de corifeus da defesa oficial dos Direitos e Liberdades dos cidadãos: respigamos aqui a presunção de inocência e a inversão do ónus da prova, obstáculos intransponíveis para que tal crime pudesse vir a ser consagrado na nossa Lei.
Na batalha contra a criação deste novo tipo perfilaram-se, de espadas e varapaus, resmas de académicos; os deputados de todos os Partidos que então eram oposições; Magistrados Judiciais, de vários graus hierárquicos; e, até, imagine-se, agentes do Ministério Público (MP).
Com eles, graças a eles, e ao divino Tribunal Constitucional, ficámos certos e seguros de que nunca seria pensável em Portugal um Crime que pudesse, no processo da sua investigação e julgamento, violar a presunção de inocência, nem, muito menos, inverter o ónus da prova. Inversão essa que é muito fácil de entender: ter de ser o Arguido, o suspeito da prática, a ter de provar ser falsa a acusação que o MP lhe move ao encontrar-lhe património de origem desconhecida ou que ninguém "entende" de onde vem.
Isto apesar do ditado popular: "quem cabritos vende e cabras não tem…"!...
Dormimos, pois, fiados em que inversões do ónus da prova nunca existiriam em processo penal português, como mandam as boas regras da Justiça e da Razão.
Porém, a realidade é outra… e bem diversa.
A hipocrisia do mundo jurídico actual luso chegou a tal ponto que há que concluir que a presunção de inocência só vale quando o Estado quer, e que a inversão do ónus da prova está já consagrada, e em prática, cada vez com mais vigor, no processo penal português. A vida quotidiana, dos processos-crime que hoje por aí "correm" (neste tema, "correm" mesmo, não há falta de meios!), demonstram-no: conquanto os Arguidos tenham as características ou condições "certas" – uma massa base de política, umas folhas de actividade económica lucrativa, e ninguém de primeira água mediática (não vá o tema dar brado, como quando as detenções por 48 horas duram 360 horas).
Expliquemo-nos melhor: imagine o leitor que há um indivíduo suspeito da prática de um crime de corrupção; e imagine, ainda, que durante o inquérito, sem qualquer acusação, o MP decide arrestar-lhe a totalidade do património (que é o MP quem decide, pois os Tribunais nisto…), para que possa vir a decidir-se, a final do processo, que, sendo o Arguido responsável, tal património pague as custas, multas e indemnizações devidas, seja a privados, seja ao Estado. Neste exemplo, tudo é linear e sem crítica.
Porém, não é "só" esse o regime vigente. Em Portugal vigora um regime draconiano, inadmissível a qualquer luz que seja, de direito penal, processual penal, civil, administrativo ou "celestial"… e isto defendido por académicos e magistrados que defendem o indefensável "com unhas e dentes"… alguns, muitos, que eram precisamente os que julgavam inconstitucional o crime de enriquecimento ilícito, "pois implicava uma inversão do ónus da prova". E como é que dão esta "guinada racional"? Fácil: enquanto tal crime era um mecanismo de direito penal, sujeito a regras exigentes de respeito pelos direitos e garantias dos cidadãos, já o mecanismo hoje em vigor, com que a seguir espantarei a maioria dos leitores, "não tem nada que ver" com processo penal, apesar de só poder surgir no seio de um processo penal, de só poder ser promovido pelo MP em processo penal, e de só poder ser decretado por Tribunais Criminais. E com esta cosmética hipócrita, com um jogo de semântica absurda, tudo passa a ser possível.
Então, sciat urbis et orbis, o que temos hoje em processo penal? Temos o seguinte, que muitos Catedráticos nem sequer sonham que existe, e outros que sonham, não têm noção do que isso significa na verdade!
Dou um caso real: há um suspeito da prática de um crime (de corrupção, ou de um "monte" de outros que o legislador vai acrescentando); essa pessoa é sujeita a um arresto de 100% do seu património, para eventual confisco do mesmo no final do processo; e no arrastão é arrestado também, a 100%, o seu unido de facto; e também a mãe do unido de facto. E todo o património de uma família à qual, formalmente, nem sequer pertence o suspeito de ter praticado o crime, património por vezes reconhecidamente construído durante séculos, poderá ser confiscado a final – bastando, para tal, que não consigam todos os arrestados demonstrar cêntimo a cêntimo de onde vieram todos os bens e direitos que possuem (lá está, por vezes, há gerações). Mais: o confisco pode ter lugar ainda que não haja condenação nenhuma!
Como assim, sem condenação nenhuma? Sim, sem condenação nenhuma: basta que o arrestado não consiga fazer prova da fonte dos euros com que comprou o terço que ofereceu à filha na primeira comunhão, e lá vai o terço. Mas onde diabos meteu esta gente a proibição da inversão do ónus da prova? Nenhures: é que tudo ocorre em processo penal, mas não é, para eles (só para eles) mecanismo penal… dizem ser resultado de um processo penal, mas que constitui uma investigação autónoma de uns gabinetes que há lá para a Polícia Judiciária e a Autoridade Tributária…
Senhores, tragam-nos o Direito Penal e Processual Penal da Ditadura. Apre!
Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico
Tal como o excesso de açúcar causa diabetes, o excesso de gordura leva a mau colesterol, a junk food leva a obesidade ou o álcool a cirroses, a civilização global da informação levou a Humanidade a dar um trambolhão gigantesco para o caldeirão da ignorância.
A hipocrisia do mundo jurídico actual luso chegou a tal ponto que há que concluir que a presunção de inocência só vale quando o Estado quer, e que a inversão do ónus da prova está já consagrada, e em prática, cada vez com mais vigor, no processo penal português.
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