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Saragoça da Matta
Saragoça da Matta Advogado
30 de dezembro de 2024 às 07:12

A post-globalidade e o caminho para Marte

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Edição de 5 a 11 de agosto

Tal como o excesso de açúcar causa diabetes, o excesso de gordura leva a mau colesterol, a junk food leva a obesidade ou o álcool a cirroses, a civilização global da informação levou a Humanidade a dar um trambolhão gigantesco para o caldeirão da ignorância.

O Homem sempre sentiu necessidade de classificar e arrumar, em caixinhas de pensamento, todos os factos que lhe são dados a conhecer. No domínio da História isso é particularmente evidente: temos idades, civilizações, eras. Mais recentemente, e abrangendo períodos muito curtos, temos as gerações. 

Sobre o preciso momento em que vos escrevo, crismamo-lo de post-globalidade, como uma idade que sucede àquela da globalidade. Não a globalidade iniciada por Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães, Vasco da Gama e tantos mais dos Navegadores portugueses. Essa é uma globalização mais figurativa, política e filosófica, do que real. 

A idade da globalização, ou da globalidade, hoc sensu, iniciou-se muito após os Séculos XV e XVI. Mais propriamente com a massificação da internet, das suas componentes e da banalização do comércio global, possibilitado este por uma quase inexistência de fronteiras, no que ao comércio concerne. A par disso, veio o anéantissement das peculiaridades culturais de cada povo, ao espapaçar das identidades nacionais, religiosas, filosóficas ou mesmo morais (em sentido de "mores"), e, pior de tudo, à total degradação do valor do conhecimento. 

A idade da informação, já podemos vê-lo agora, transformou-se na nova idade das trevas, na idade da supina ignorância. Paradoxalmente: excesso de informação e elefantíase da ignorância. E não aponto, aqui, apenas, às falsas notícias, à desinformação dolosa, à manipulação do real, com os objectivos, digamos, típicos de toda a conduta humana daninha ou malévola. Penso mesmo na ignorância negligente, ou levemente dolosa, de largos milhões de humanos, que estando ligados à internet e às redes sociais mais de cinquenta ou sessenta por cento do seu dia, são leitores acríticos, incapazes de uma reflexão, de uma ponderação, de uma avaliação ou apreciação daquilo que lêem, escutam, vêem. São intelectualmente incapazes. 

Tal como o excesso de açúcar causa diabetes, o excesso de gordura leva a mau colesterol, a junk food leva a obesidade ou o álcool a cirroses, a civilização global da informação levou a Humanidade a dar um trambolhão gigantesco para o caldeirão da ignorância. 

O trambolhão fez-nos entrar no primeiro período da História dos últimos 500 anos em que o conhecimento da Humanidade não cresceu, não alastrou, não atingiu novos patamares de exigência, nem novas camadas de populações. Ao invés, regrediu. Estamos num momento em que o grau de ignorância "escolar" básica (ainda que oficialmente alfabetizada) percentual por relação ao número de Humanos (hoje somos oito mil e duzentos milhões, ou oito ponto dois biliões), será a mais elevada dos últimos 250 anos. Dir-se-á, paradoxalmente, pois nunca houve tanto acesso… A questão é: mas acesso a quê?  

Essencialmente, acesso à desinformação, à falsidade factual, às manifestamente irracionais doutrinas filosóficas, religiosas ou políticas, às imaginativas (algumas apelativas) teorias e descobertas científicas falsas ou infundadas segundo os mais básicos critérios empíricos e experimentais. 

Tal foi o bacanal de informação, que a Humanidade colapsou na razão, no pensamento, na capacidade analítica e crítica de muitos dos tais milhares de milhões de seres humanos. Estes, adicionados àqueles que nunca tiveram qualquer acesso fosse a que informação fosse (mas que também não têm qualquer relevância sequer para haver quem os queira manipular, pelo menos extramuros dos seus grupos, tribos, clãs ou mesmo Estados), geraram fileiras inesgotáveis de carne intelectual para canhão. Massa dúctil!. 

Problema: os primeiros, arrebanhados em massas violentamente acéfalas, têm o poder de mudar a face da Terra. Literalmente. Veja-se, por todos, e meramente a título de exemplo, o poder de cidadãos votantes de muitos Estados, por uma banda, e de cidadãos aparentemente votantes de muitos outros Estados, por outra.  

Aqueles primeiros por acção, estes últimos por omissão, determinam se as percentagens de CO2 na atmosfera decrescerão, ou não, assim evitando o caminho da destruição da espécie. Tão simples quanto isso. Ou tão simples como de si agora depender a sobrevivência do conceito e prática relativa aos Direitos Humanos. Seja pela fragilização de instituições da ONU como a OMS ou a UNICEF, seja por destruição das bases internacionais de fraternidade entre todos aqueles Estados que até hoje suportavam a chamada Civilização Ocidental. 

E tudo isto, atente-se, por uma enorme congestão de informação: boa uma, embora rara, avariada outra, na sua gritante maioria. 

Eis-nos, pois chegados, ao final do primeiro quartel do Século XXI. E, assim também, à Era da post-globalidade. Era em que o caminho de crescente abertura ao diferente e ao novo, de envolvimento em causas globais, de desenvolvimento científico, técnico e artístico, e, até, de aproximação entre a espécie, subitamente entrou em colapso. 

Vivemos, pois, a post-globalidade, a post-informação, e, pior, a post-verdade. 

Enfrentamos pela proa a vaga mais mortífera que poderíamos imaginar no último quartel do Século anterior: uma vaga de retrocesso na tutela dos Direitos Humanos, de falência dos sistemas políticos democráticos, da gestação de massas imensas de Humanos cívica, social e politicamente incapazes. Não falo em capacidade filosófica, artística ou científica. Só cívica, social e política. 

E, perante isso, ganha força um suposto "novo projecto" para a Humanidade: colonizar Marte.  

Como se mudando o cenário, mas mantendo actores, a récita pudesse ser outra. Feliz 2025! 

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

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