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Pedro Proença Advogado
26.09.2025

Autárquicas “Low Profile”

O desinteresse pelas autárquicas é sintoma de um problema maior: a democracia portuguesa está a tornar-se cada vez mais mediática e cada vez menos participativa.

As eleições autárquicas aproximam-se silenciosas, quase clandestinas, como se fossem um detalhe menor na engrenagem da democracia portuguesa. No espaço mediático, porém, o silêncio é ensurdecedor: A actualidade internacional, dividida entre guerras, assassinatos mediáticos, reconhecimento do Estado da Palestina. A actualidade nacional está mobilizada em torno das eleições no Benfica, do despedimento de Bruno Lage e do regresso cinematográfico de José Mourinho e dos resultados do clube ou de uma flotilha que se dirige a Gaza. É quase impossível encontrar espaço de antena para os candidatos que se preparam para disputar câmaras, assembleias municipais e juntas de freguesia. A sensação que fica é a de que há mais cartazes espalhados pelas cidades com os rostos dos candidatos ao Benfica do que daqueles que ambicionam dirigir os destinos das autarquias.

A política local é, porventura, a que mais diretamente influencia o quotidiano de cada cidadão. É no município que se decide se a rua é asfaltada, se a escola primária é reabilitada, se o jardim é mantido, se a recolha do lixo funciona, se há transportes decentes. É nas juntas de freguesia que se sente, em primeira linha, a proximidade ou a ausência do Estado. E, no entanto, estas eleições, que definem quem gere o território, ficam soterradas pela espuma dos dias e pelos fait-divers mediáticos.

Enquanto o país discute o momento do Benfica e o regresso de Mourinho, a democracia local caminha em piloto automático, como se não houvesse nada em jogo. A ironia é que, depois, são os mesmos cidadãos que se queixam da degradação dos serviços municipais, da burocracia camarária ou da falta de investimento no bairro.

Compreendo que é mais fácil vender audiências com uma conferência de imprensa de José Mourinho ou com um debate sobre o momento do Banfica do que com a apresentação de um programa municipal sobre mobilidade ou resíduos sólidos. O circo mediático tem sempre preferência sobre a substância política. É como se as eleições autárquicas fossem um aborrecimento, um intervalo no grande espetáculo de entretenimento nacional.

Esta falta de atenção mediática tem consequências. Candidatos pouco escrutinados chegam ao poder local sem que ninguém saiba bem ao que vêm. Projetos obscuros ou até duvidosos passam despercebidos. E os partidos políticos aproveitam-se desse silêncio para colocar candidatos que servem mais as máquinas partidárias do que os interesses das populações.

No meio deste vazio desinteressante até há espaço para uma líder partidária que optou por uma missão à vela por esse Mediterrâneo fora em vez de estar no terreno a mobilizar o seu partido para uma batalha eleitoral que pode ser decisiva para a sobrevivência do seu Partido. Talvez seja uma nova forma de campanha, com “roadshows” aquáticos em iates e catamarãs.

Este desinteresse pelas autárquicas é sintoma de um problema maior: a democracia portuguesa está a tornar-se cada vez mais mediática e cada vez menos participativa.

É evidente que o futebol e as figuras públicas fazem parte da nossa cultura, mas não podem obscurecer o essencial. Os municípios movimentam orçamentos de centenas de milhões de euros, são os maiores empregadores em muitas regiões e têm poder de decisão em matérias como urbanismo, ambiente, habitação e transportes. Quando os eleitores ignoram este processo, entregam um cheque em branco a quem estiver mais bem posicionado na máquina partidária.

Talvez esteja na hora de relembrar que também devemos olhar para baixo, para o bairro, para a rua, para a freguesia. É aí que se vive a democracia no seu estado mais puro e mais prático. E é aí que a abstenção e o desinteresse têm efeitos imediatos: ruas por arranjar, equipamentos por manter, decisões por tomar.

Se continuarmos a deixar as eleições autárquicas passar despercebidas, não nos espantemos depois com o rumo que as cidades e vilas tomam. Os autarcas não caem do céu, são escolhidos. E se os escolhemos mal, ou se os deixamos ser escolhidos por meia dúzia de fiéis, a responsabilidade é de todos nós.

No próximo dia 12 de Outubro o poder local vai ser decidido sem atenção, sem debate e sem paixão.

Se a política local continuar a ser invisível, não será apenas culpa dos partidos ou dos media. Será também culpa de uma cidadania distraída que prefere o ruído ao essencial. E, como sempre, no fim da viagem, quem fica à deriva somos nós.

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