O ano que podia ter sido
Para variar convido-vos esta semana para uma viagem esperançosa pelo ano que poderíamos ter tido.
Muitos já o disseram: “por menos caiu um governo de maioria absoluta”. Imagine a polvorosa em que estaria o país político se as crises no SNS, na habitação ou no aeroporto tivessem lugar numa governação socialista. O golpe de 7 de novembro de 2023 ditou o fim infundado não só de um ciclo político, mas de um paradigma de estabilidade, moderação e crescimento. Nestes 2 anos, mais que duas eleições legislativas, descobrimos que o PSD se tinha radicalizado após Rui Rio, que temia o Chega ao ponto de se vender às suas ideias e que os problemas não ficavam por resolver por falta de vontade ou de recursos.
Os finais de ano são dados a balanços. A semana passada escrevi já o saldo de como Trump mudou tudo na política internacional. As análises ao mundo (e ao país também) são, hoje em dia, invariavelmente lúgubres. Para variar, por isso, convido-vos esta semana para uma viagem esperançosa pelo ano que poderíamos ter tido.
Em janeiro, tivemos o terceiro diretor executivo do SNS em menos de dois anos. Uma rotatividade que se evidencia também no INEM ou nas administrações hospitalares, que voltaram a servir de prateleira dourada para autarcas e boys. Onde já vai a reforma do SNS? Podíamos ter tido a despolitização da sua gestão. Podíamos estar a falar da sua expansão para a saúde oral, para a saúde mental, para a saúde preventiva. Poderíamos, sobretudo, ter evitado um corte de 880 milhões nas suas compras de bens e serviços. Poderíamos, mas não o fizemos e os resultados estão à vista.
Em fevereiro, enquanto o país entrava numa crise política por causa de uma lei dos solos que não surtiu nenhum efeito, cumpriu-se dois anos do programa Mais Habitação. Além de revogarem várias normas, como as que davam igualdade fiscal ao arrendamento e ao alojamento local, muitas ficaram na gaveta. Para quem fala em construir mais, é surpreendente que tenha ficado na gaveta o simplex urbanístico que o PS aprovou com a IL. Ainda em fevereiro foi publicado o alargamento do apoio ao alojamento aos estudantes da classe média – uma resposta de socorro à emergência na habitação estudantil. Meses depois de entrar em vigor, este apoio continua por pagar. Este ano, podíamos ter tido, no mínimo, a concretização das medidas já aprovadas em matéria de habitação. Poderíamos, mas ficámo-nos pelas intenções.
Em março, um Primeiro-Ministro apresentou uma moção de confiança porque se recusou a enfrentar uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Foi uma situação inédita e indigna, em que a Spinumviva, cuja atividade de consultoria em matéria de proteção de dados é hoje conhecida, foi apresentada como um veículo para gerir heranças de prédios rústicos e em que se regateou o prazo que o Parlamento teria para esclarecer as legítimas dúvidas que teve. Por causa disso fomos a eleições antecipadas que reconduziram a AD no Governo com apenas mais 3 pontos percentuais. Montenegro achou-se não só ilibado como empoderado.
O “não é não” que o tinha caracterizado passou à história. Importava ostracizar o PS e pôr o Chega debaixo da asa. Para isso, fez aprovar em tempo recorde uma Lei dos Estrangeiros e, depois, uma Lei da Nacionalidade, que contradiziam até o que o próprio defendeu, nomeadamente em matéria de reagrupamento familiar. Poderíamos ter investido na integração em vez da estigmatização de quem escolhe cá se fixar. Poderíamos ter mantido um cordão sanitário à extrema-direita. Mas Montenegro não se conseguiu aguentar.
Se tal “guinada” já se antevia, em julho o pacote laboral apanhou todos de surpresa. O mesmo estava convenientemente omisso do programa eleitoral da AD. Durante meses, basicamente até à marcação de uma greve geral que, os dados revelam, teve um grande impacto no país, o Governo não quis negociar. Teve azar porque até o seu novo parceiro parlamentar percebeu que as medidas eram impopulares. Poderíamos estar hoje a ter uma discussão sobre o futuro do trabalho e da segurança social ou o caminho para melhores salários. Mas ficámos presos a defender os nossos direitos.
Até agora, tudo poderia fazer parte de uma inteligente estratégia política. Agosto não. Foi o mês “horribilis” do Governo. Pior que o fecho das urgências hospitalares foi a insensibilidade de manter a Festa do Pontal, de gins na mão, enquanto metade do país ardia. Ao mesmo tempo, o Governo protelava o pedido de ajuda à Europa, recusava declarar o estado de contingência ou de calamidade e os bombeiros andavam sem meios aéreos e sem dinheiro para pagar salários, por causa de dívidas do Estado. Poderíamos ter tido um Governo experiente e organizado no combate aos incêndios e a prosseguir a reforma da floresta. Podiamos mas, em Quarteira, não se daria por isso.
Setembro foi um mês de engenharias financeiras. Não me refiro apenas à descida do IRS que, apesar de magra, refletiu-se desproporcionalmente nas retenções na fonte nessa altura do ano. Também as pensões tiveram um bónus temporário, que as contas bem revelam que podia ter sido permanente. Entre os pingos da chuva passou a reprogramação do PRR. Sucede que esse dinheiro não só foi todo canalizado para instrumentos de incerto impacto económico, como não se deu garantias para a continuidade dos investimentos “desprogramados”. Poderíamos ter um Governo que sabe honrar a palavra. Mas esse não foi o caminho.
Os últimos meses do ano são, como é habitual, dominados pelas opções orçamentais. Este governo tomou as suas. Além do corte de 880 milhões no SNS, já amplamente divulgados, o OE apresentou cortes nos apoios aos agricultores, na política climática e até no investimento em infraestruturas. Por sua vez, o Governo teve de absorver o impacto nas contas de uma nova redução de IRC e IRS, próximo de mil milhões de euros. Esse dinheiro poderia ter sido utilizado para construir creches, casas ou hospitais. As receitas adicionais graças à subida do ISP podiam pagar um IVA zero nos alimentos. Mas nem para admitir que o ISP vai subir houve disponibilidade.
O Governo não convive bem com o seu trajeto. Promete muito reformismo mas não passa dos grupos de trabalho e powerpoints. A economia cresce menos, os salários também. O preço das casas nunca cresceu tanto e há hoje mais alunos sem professor e mais portugueses à espera de uma consulta ou cirurgia do que havia quando este Governo tomou posse. Podíamos ter um país a caminho de ficar melhor. Em vez disso, temos um treinador de bancada que fala de uma mentalidade Ronaldo que não praticou. Haja esperança – afinal, 2026 é um ano novo.
O ano que podia ter sido
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