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Miguel Costa Matos Economista e deputado do PS
25.11.2025

Novembro pertence a todos

Ao fracasso da extrema-esquerda militar juntou-se a derrota de muita direita que queria ilegalizar o PCP. Afinal, nessa altura, os extremismos à esquerda e à direita não eram iguais. Ainda hoje não são, por muito que alguns o proclamem.

A tentativa de equiparação do 25 de abril com o 25 de novembro falhou. Intrinsecamente os portugueses sabem bem distinguir o que estava em causa em cada dia. Contribuiu para isso a intervenção esclarecedora e aparentemente unânime dos Capitães de Abril, com destaque para o livro de Vasco Lourenço e a entrevista de Sousa e Castro ao Público.?

As comemorações prosseguem, ainda assim. O Governo perdeu uma boa oportunidade de lhe dar a dimensão que a direita sempre preconizou, ao optar por uma abordagem facciosa que culmina com o documentário alusivo ao dia ser realizado pelo próprio assessor de imprensa do ministro do CDS. É pena, mas com os erros dos outros posso eu bem. O que mais me preocupa é que a esquerda não tenha percebido nem agarrado a oportunidade de assinalar a verdadeira vitória desse dia: uma democracia onde cabem todos, todos, todos.

É compreensível a renitência da esquerda em mudar de estratégia. Seguindo a doutrina de Mário Soares em relação a tantas outras matérias, não se quis comemorar este dia para não reabrir as feridas da História. É exatamente por isso, aliás, para fazer “pirraça” que a direita o quer assinalar. Percebendo que a “correlação de forças” se tinha alterado e que se iria impor uma celebração revanchista desses feitos político-militares, fizeram mal os partidos da esquerda em permanecer enquistados na negação de uma realidade consumada, ao invés de a aproveitar para repor a verdade e defender a democracia.

o ano passado escrevi sobre como o 25 de novembro foi apenas o último de vários momentos de fragilidade do PREC e sobre a verdade histórica de quem fez o quê.  Os factos hoje são ainda mais claros e não são motivo para andar cabisbaixo: o PS deve ter orgulho em ter liderado no plano civil a resistência ao pronunciamento militar mas também o PCP deve recordar a maturidade de Cunhal em acabar com a revolta que, na verdade, não iniciou. Permitir à direita, que então se encontrou bastante ausente, apropriar-seagora deste dia é uma injustiça mas, sobretudo, um erro.

Devemos contestar esta memória ficcionada porque a sua impunidade encoraja a reincidência. Nos últimos anos, deixámos vingar outras narrativas falsas e preconceituosas, como a de estarmos a ser ultrapassados pela Europa do Leste ou de que os impostos não paravam de subir. Nunca devemos abdicar de um chão comum de verdade no debate democrático.

Mas há uma razão maior para a esquerda assinalar o 25 de novembro. É que a verdadeira “moral da história” deste dia é que todos são precisos para a democracia. Ao fracasso da extrema-esquerda militar juntou-se a derrota de muita direita que queria ilegalizar o PCP. Afinal, nessa altura, os extremismos à esquerda e à direita não eram iguais. Ainda hoje não são, por muito que alguns o proclamem.

De facto, esse consenso de Novembro está hoje em risco num país que faz uma absurda comparação da social-democracia europeia com a prática dos regimes chineses ou venezuelanos. Só este devaneio revanchista justifica a obsessão da direita em combater mais o “socialismo” que o populismo. Em combater o “wokismo” e a imigração ao invés de combater a pobreza, a insegurança, a violência doméstica ou a crise climática. Em boa verdade, neste admirável mundo novo, nas próprias políticas públicas, muitos dos consensos que se vinham formando ao longo de 50 anos de democracia estão hoje mais frágeis ou já em rutura.

Sabemos como chegámos aqui. O sucesso eleitoral persistente do Partido Socialista nos últimos 30 anos motivou a radicalização da direita portuguesa. O súbito sucesso do Chega assustou a direita moderada, insinuando a imitação como caminho fácil para, pelo menos no curto prazo, angariar alguns eleitores. 

Não há só um mau-estar com o regime. Há mesmo um mau-estar do regime e em parte alguma isso é mais visível do que na sua relação com a Justiça. Que a justiça é lenta em Portugal todos o sabem há muito. Que ela não respeita o segredo de justiça, também. Não aceitando isso como fatalidades, são infelizmente evidências. Que isso seja usado para lançar suspeitas sem aparente fundamento, como já aconteceu com tantos casos (muito posteriormente) arquivados, é mais grave. Que se lance suspeitas e depois se passe dois anos sem avançar com a investigação, como sucede com a Operação Influencer, é mais grave ainda.

O caso ganha outros contornos quando estamos perante a omissão ou manipulação de prova, que permitiu escutar ilegalmente um Primeiro-Ministro. Não é credível que não se tenham apercebido disso no controle judicial que é feito quinzenalmente às escutas. A recusa, quatro vezes repetida, em permitir ao ex-Primeiro-Ministro consultar o processo faz adivinhar que existem outros erros grosseiros, como este ou como a alegada ignorância de que a Relação já havia despachado o que estava pendente sobre este caso.

O 25 de novembro pôs termo ao processo revolucionário em curso, consolidando a democracia e convertendo inimigos em adversários. Esse caminho não é, como pensávamos, irreversível. Hoje, essa consolidação democrática está em perigo: desde a justiça ao estado social, até aos ossos do nosso sistema político. Será importante, por isso, que comemoremos o verdadeiro espírito de Novembro e façamos da nossa democracia um espaço de todos, todos, todos.   

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