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25 anos depois, Macau revela fracasso da reunificação da China

João Carlos Barradas 20 de dezembro de 2024 às 07:00

Os 51 casinos de Macau geram receitas superiores aos 439 casinos de Las Vegas, a ordem reina nas ruas, e, no entanto, é irremediável a frustração. 

Xi Jinping contempla esta sexta-feira em Macau, pelo 25º aniversário da transferência de poderes, o esplendor e o fracasso da estratégia do Partido Comunista para concretizar a unificação da China. Os 51 casinos de Macau geram receitas superiores aos 439 casinos de Las Vegas, a ordem reina nas ruas, e, no entanto, é irremediável a frustração. 

AP Photo/Kanis Leung

O desígnio de modernização económica e militar, salvaguardando o poder do Partido Comunista, enunciado nos anos de 1980 por Deng Xiaoping, o arquiteto da República Popular pós-maoísta, cumpriu-se no essencial. 

Já o fracasso do projeto de reunificação do país, segundo o princípio "um país, dois sistemas", incorporando através de acordos políticos a colónia britânica de Hong Kong e o território chinês sob administração portuguesa, tendo em vista a posterior anuência de Taiwan a integrar a República Popular, deixou a pairar a ameaça de guerra. 

Ao firmar com Londres e Lisboa acordos válidos por 50 anos a partir de 1997 e 1999, respetivamente, acerca da constituição de Regiões Administrativas Especiais dotadas de elevado grau de autonomia, com preservação dos sistemas capitalistas e das garantias legais sobre liberdades civis e individuais vigentes até então, Pequim procurava levar Taipé a aceder pôr termo à cisão territorial resultante da guerra civil concluída em 1949 com a retirada das forças nacionalistas para a ilha sob proteção norte-americana. 

Tendo em conta a repressão da contestação ao regime comunista em 1978-1979 e em 1989, a democratização de Taiwan a partir de 1987 com crescentes reivindicações autonomistas e independentistas, e os intermitentes protestos nacionalistas no Xinjiang e no Tibete, era difícil de crer que a República Popular levasse a cabo uma integração progressiva de Hong Kong e Macau nos termos acordados com o Reino Unido e Portugal. 

A praça financeira de Hong Kong, cada vez mais imbricada com à vizinha Zona Económica Especial de Shenzhen e rival da reemergente Xangai, acabou, com efeito, sacrificada aos imperativos de combate à poluição democrática e do confronto entre Pequim e Washington. 

Sucessivos protestos com forte apoio popular, em especial o Movimento dos Chapéus de Chuva de 2014 bem como as manifestações em 2019-2020, contra a imposição de legislação restritiva dos direitos cívicos que culminou consagrada na Lei de Segurança Nacional, imposta em junho de 2020, abrogaram efetivamente o estatuto de autonomia que Margaret Tatcher se vira obrigada a negociar com Deng. 

Terra complacente e negocista 

Já Macau nunca levantou tais problemas a Pequim. 

O domínio português na Foz do Rio das Pérolas, sempre dependente da aquiescência das autoridades da província de Guangdong e de Pequim e de outros poderes fácticos regionais desde o século XVI, submeteu-se à tutela comunista na sequência dos motins maoístas de dezembro de 1966, e, salvo turbulências nos idos de 1989 por ocasião do Massacre de Tiananmen, nem movimentos democráticos, militantes pró-Taiwan ou governadores lusos puseram em causa o direito de reserva, veto ou imposições do Partido Comunista.  

A Assembleia Legislativa aprovou em fevereiro de 2009, legislação punitiva de atos de traição, secessão e subversão, conforme ao pretendido pelo Partido Comunista, seguindo, posteriormente, na senda de repressão de qualquer ação que possa vir a ser tida como contrário aos superiores interesses da pátria.    

O sexto governo da Região Administrativa Especial, que toma posse este 20 de dezembro, será, tão respeitoso e obediente quanto os anteriores, com a diferença significativa de o chefe do executivo não ser, pela primeira vez, natural de Macau e cultivado nas redes locais de negócios e patrocínio político – nasceu na vizinha Zhongshan em 1962, formou-se em Direito em Pequim e frequentou a Universidade de Coimbra –, tendo presidido ao Tribunal de Última Instância.  

Sam Hou Fai, tal como seu homólogo em Hong Kong, o antigo comissário adjunto da polícia John Lee Ka-chiu, quinto chefe do executivo empossado em julho de 2022, é, assim, um homem do sistema de regulação política, judicial e securitária tal como é concebido pelo Partido Comunista. 

Muito subsiste ainda do que seria uma autonomia respeitadora de serviços mínimos em matéria de liberdades cívicas como, por exemplo, acesso a media e redes sociais proibidas na República Popular a que acresce tolerância em matéria de costumes, desde que não se promovam comportamentos tidos por ostensivos e desafiadores das normas da moral vigente, mas sem que nada possa criticar ou negar os valores promovidos pelo Partido Comunista e a devoção à Pátria una e indivisível. 

A dádiva de Mao Zedong

À harmonia social é essencial a garantia de níveis de subsistência mínima a uma população residente, atualmente rondando os 700 mil habitantes, fruto de vagas de migração legal e clandestina do Continente.    

O contrabando de ouro fez fortunas desde a entrada em vigor do acordo de Bretton Woods sobre política monetária, em 1944 – que não abrangia Macau abrindo a via do tráfico com Hong Kong –, até 1974. 

Os têxteis, com fabrico infringindo com frequência direitos de propriedade intelectual ou reexportação, violando quotas internacionais, de artigos oriundos da China até ao início dos anos de 1990, valiam, igualmente, rendimento apreciável. 

Volvidos os tempos do ouro e dos têxteis, restou o ânimo, a razão de ser, a alma, o cheiro, a sedução e a desgraça de Macau que desde há muito era e ainda é o jogo. 

Macau Inferno do Jogo, Macau a Meca do Jogo, são epítetos que muito devem ao governador Isidoro Guimarães.  

Ao oficial da Armada deve-se, em 1849, a primeira legalização comercial do jogo num esforço para sustentar o orçamento da Província de Macau, Timor e Solor cujos tratados comerciais no sul da China tinham sido prejudicados pela usurpação colonial de Hong Kong pelo Reino Unido, em 1842. 

Desde então, seria pecado e insanidade política, a cidade do Santo Nome de Deus renegar tal vocação e, assim, abarcou com sofreguidão a oportunidade oferecida por Mao Zedong, alçado ao poder em 1949, ao proibir jogos de azar em casino.  

Desde então, na Hong Kong dos britânicos apostava-se em cavalos, em Macau em tudo se podia apostar e nada superava o casino. 

Diversificar a economia, potenciar o património luso-malaio-chinês de um porto de tráficos históricos, foram, depois, veleidades portuguesas escusas nos derradeiros anos de administração lusa. 

As diretivas de Xi Jinping, após ascender ao poder em 2012, para promover Macau como destino turístico cultural, de congressos e eventos desportivos, plataforma de intercâmbio e investimentos privilegiando estados de língua portuguesa, de modo a reduzir a dependência do jogo e, sobretudo, conter a fuga de divisas da República Popular, também de pouco valerem. 

Os planos de modernização tecnológica e integração económica no delta do Rio das Pérolas, abarcando Macau e sete cidades da província de Guangdong, e projetando-se, através, da vizinha província de Guangxi, para o sudeste da Ásia, ganharam corpo, no entanto, e os 55 quilómetros da ponte e túnel entre Macau, a adjacente Zona Económica Especial de Zhuhai e Hong Kong são exemplo patente do possa vir a ser o futuro próximo se um conflito militar não eclodir no Estreito de Taiwan.  

Para Macau, contudo, o essencial é preservar a receita das concessões, que representam 80% das disponibilidades do do orçamento, até 2033 de jogos de casino a seis operadores, três deles com maioria de capital norte-americano: MGM, Sands e Wyn.  

Após a liberalização dos contratos, em 2002, pondo termo ao monopólio que a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, liderada por Stanley Ho, detinha desde 1962, bastaram quatro anos para Macau ultrapassar Las Vegas. 

Passado o choque da pandemia Covid 19, com a reabertura do território em fevereiro de 2023, o jogo retomou o seu curso.  

A receita bruta acumulada nos primeiros onze meses deste ano atingiu 208,580 mil milhões de patacas, cerca de 24,6 mil milhões de euros, e os efeitos da repressão dos junkets – promotores e angariadores em contrato com casinos e maioritariamente envolvidos em operações de lavagem, transações e transferências ilícitas de dinheiro – agora limitados a meia centena de agentes ainda não foram suficientes para conter a fuga de capitais da República Popular. 

Os junkets, através do vazadouro de Macau e do crescente número de casinos no Sudeste Asiático, são um dos canais fulcrais para transferência ilícita de capitais da República Popular, tendo em 2020, segundo um dos raros relatórios oficiais disponíveis, canalizado 145 mil milhões de dólares da China para o estrangeiro.  

Macau como plataforma de transferência ilícita de capitais é um problema relevante para Pequim e ultrapassa em muito outras considerações. 

Pastel de nata e bolinho de bacalhau

Os cerca de 100 mil portadores de passaporte português em Macau e Hong Kong, os cerca de 13 mil macaenses de cultura e língua cantonense e portuguesa, vivem com garantias suficientes de não hostilização por parte do regime comunista.  

Macau não vingou como plataforma para incrementar os contactos entre a República Popular e a chamada lusofonia. 

Pequim dispensa intermediações via Macau, mesmo que algo lhe rendam os préstimos do Instituto Camões ou do Instituto Guimarães Rosa para formar quadros que sirvam ao investimento direto e negociação política nas ex-colónias portuguesas em África tal como em Timor-Leste. 

Brasília negoceia diretamente com Pequim e Lisboa, pouco afeita e carente de visão, meios humanos e financeiros aparenta dar-se por satisfeita com o decoro dos comunistas chineses, seus servos e representantes no trato com os tolerados e aquiescentes portugueses da Cidade do Santo Nome de Deus de Macau onde o pastel de nata adoça a ementa multicultural da Região Administrativa Especial.

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