Depois de um resumo dos momentos mais importantes do primeiro dia, regressamos com um compêndio dos destaques do NOS Primavera Sound 2022. Houve motivos para rir e para chorar, para se deliciar com música nova e reviver um sentimento antigo - em suma, para ver refletida na música toda a vida. Aqui está o que fica do regresso de um festival icónico.
As pérolas escondidas
Muito do que faz deste festival especial é o facto de sairmos de lá com uma sólida biblioteca de novos artistas para ouvir. Já falámos do sucesso do indie colorido de Penelope Isles, no primeiro dia, mas porque a diversidade é palavra de ordem, faça a si próprio o favor de descobrira música de Maria José Llergo, dona de uma maravilhosa voz que emprega, sempre com manifesta visão, num espaço entre o flamenco tradicional e a pop vanguardista. Sanación, o seu único disco, cairá bem aos ouvidos dos fãs de Rosalía.
Foi graças à saudável ligação do festival aos terrenos mais pesados do rock que tivemos o privilégio de conhecer, no último dia, os Pile, quarteto de pós-hardcore cuja crescente influência no circuito indie americano não é difícil de explicar: equilibrando perfeitamente na ponta dos dedos a tensão entre silêncio e ruído, mostraram com excelência como o caos também pode ser deliciosamente melódico.
Os amigos improváveis
Em todos os festivais, há sempre pelo menos uma banda dramaticamente subvalorizada e que, vai-se a descobrir, estaria melhor colocada às duas da manhã do que às sete da tarde, a julgar pela maré de gente que a preside. Houve muitos casos desses este ano, mas se DIIV pareciam ser o paradigmático, logo no primeiro dia, os Khruangbin vieram fazer-lhes frente no útimo - música ligeira e amiga do passo de dança, que combina com a matiné e vai justificando (quanto mais não seja pela aprovação do público) a valorização no cartaz.
Para quem ousou desafiar os cabeças de cartaz e escolher os palcos mais pequenos, houve também louros a colher. Era difícil decidir abandonar os titânicos Nick Cave & the Bad Seeds, mas quem o fez a troco do palco Binance encontrou lá uns Black Midi que souberam justificar o peso cultural que têm angariado enquanto porta-estandartes do rock do futuro - aquele que não vê barreiras entre o noise, o avant-garde, o jazz, o spoken word e o que mais possa caber nas entrelinhas. E quem não fosse tão apreciador de Beck poderia encontrar, no mesmo palco, uma banda de rock que sabe porque se tem tornado presença constante nos festivais portugueses: Rolling Blackouts Coastal Fever, o palco é vosso sempre que quiserem.
As rainhas da noite
Numa noite de encerramento com cabeças de cartaz em falta, a liderança falou-se no feminino. Talvez não tenha sido igualmente impossível para todos a escolha entre as simultâneas Little Simz e Pabllo Vittar, mas quem, como nós, não se podia dar ao luxo de perder qualquer uma das duas encontrou uma competição dura: a primeira, com hip-hop britânico da mais fina lavra, cuja consciência e dom da palavra não deixa de lado a energia e a festa; e a última, com talvez o mais brilhantemente acelerado espetáculo de dança e música de todo o festival: um pedacinho do carnaval brasileiro aqui mesmo à porta, quando mais precisávamos dele.
Chamar-lhe-íamos o melhor DJ set de sempre (Pabllo cantava sobre um instrumental pré-gravado, mas isso pouco interessou) se não fosse pelo girar, pouco depois, dos discos de Grimes, que é, tecnicamente, péssima como DJ (falhou múltiplas transições no pouco tempo que lá estivemos), mas excelente como hypewoman dela própria e curadora de remixes de techno semi-irónicos. Às vezes, é tudo o que é preciso.
O cartaz sem cabeça
Há claramente algo que nos está a faltar nesta equação, pelo que pedimos, desde já, desculpas. Estamos, afinal, a falar de uma banda que continua a ser altamente valorizada nos cartazes do Primavera Sound e a atrair muita (ou, pelo menos, alguma) gente. Mas se houve tempo em que os Interpol eram dignos de serem chamados de cabeça de cartaz de seja o que for, essa era longínqua já lá vai.
Como se não bastasse o facto do som do palco principal estar em condições terríveis durante boa parte do set, a banda de Paul Banks parecia dar o seu máximo para colocar o Parque da Cidade a dormir a horas decentes - uma prestação não muito diferente do que já conhecíamos da banda, mas elevada a novos patamares. Embora saibamos que nem sempre é sinal de um mau concerto, não foi difícil atribuir-lhes a taça de plateia mais letárgica do festival pelos piores motivos.
Esta edição não é para velhos
Com algumas exceções - referimos a excelência habitual de Nick Cave & the Bad Seeds e chegaremos à dos Gorillaz -, esta edição não foi particularmente feliz para uma geração muito querida do Primavera Sound: a do rock dos anos 90. No último dia, os Dinosaur Jr. (que fizeram questão de salientar que são, de facto, dos anos 80) estiveram tão bem quanto, no dia anterior, à mesma hora, haviam estado os Slowdive, mas ambos sofreram visivelmente com a colocação ao fim da tarde num palco de grande dimensão - qualquer um deles já viu melhores dias neste mesmo festival.
Quanto aos dois cabeças de cartaz do segundo dia, Beck e Pavement, adoraríamos poder apelidá-los de mais do que perfeitamente adequados. O primeiro, com uma modesta alocação de uma hora de espetáculo, cumpriu os mínimos olímpicos, tendo certamente satisfeito os seus mais dedicados fãs. Já a banda de Stephen Malkmus, que fez mais do que somente justificar a sua presença, não precisava: mesmo levando menos gente ao palco NOS, é a aposta em bandas de culto como esta (e como, no passado, Neutral Milk Hotel ou My Bloody Valentine), cuja mera contemplação é uma raridade, que faz deste festival o evento especial que é.
O anticlímax
Não é de se estranhar que, para toda uma geração que perdeu a única outra passagem dos Gorillaz por Portugal, a experiência de testemunhar a banda virtual de Damon Albarn e Jamie Hewlett ao vivo tenha sido algo desconcertante. Uma grande parte do seu apelo, afinal, sempre adveio das possibilidades que proporcionava o facto de serem uma banda que, de facto, não existe, e que por isso mesmo era capaz de tudo, do dub e do reggae à eletrónica, rock, hip-hop ou à mais doce pop, e às vezes tudo isso misturado. O mistério sempre foi parte da magia.
Se quisermos trocar a visão romântica por uma mais sóbria, no entanto, é evidente que por trás das animações de Hewlett e das personagens e histórias para elas criadas sempre esteve, na verdade, um veículo para os mais delirantes caprichos pop de Damon Albarn, bem como de quem lhe apetecesse convidar para cantar consigo. E se tempos houve em que pugnavam por manter o véu sobre essa realidade, mesmo ao vivo, o facto é que o espetáculo dos Gorillaz hoje tem todos os intervenientes sob a luz direta da ribalta, especialmente Albarn - é, de certa maneira, um espreitar para o outro lado do pano.
Como ficou claro para todos os presentes, esse espetáculo, com a sua videografia imersiva, os seus elaborados jogos de luzes, as suas interações com o público, rol de convidados e desfile de hits, foi, de acordo com todas as métricas pelas quais se convencionou julgar um concerto pop, um sucesso. E Damon, como centro das atenções, foi um brilhante frontman, evidenciando, ao longo da sua performance dinâmica e efusiva (embora em partes vocalmente fragilizada) a enorme dimensão cultural das canções que contribuiu para o cânone da pop.
Infelizmente, foi perante o espanto geral que, no absoluto cume da performance, já depois do último refrão de Clint Eastwood, a última canção da noite o sistema de som sofreu uma falha geral e o palco principal do festival ficou reduzido ao silêncio durante sólidos 15 segundos, o que seria, por si só, perdoável, não tivesse a reação de Albarn sido despedir-se sumariamente sem um encore, uma tentativa de repetição da canção, um pedido de desculpas ou sequer um reconhecimento da infeliz realidade da situação: no melhor dos casos, um final tragicamente anticlimático para um grande concerto, e no pior, uma tremenda falta de respeito para com o seu público.