O conto de fadas do estúdio indie que "limpou" os Óscares e fez História

Nunca um estúdio de cinema tinha arrebatado as seis categorias principais dos Óscares. Aconteceu este ano, com uma produtora e distribuidora "indie". Confirma-se: a A24 está mesmo a mudar o cinema americano.

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A história do estúdio que 'limpou' os Óscares
Gonçalo Correia 13 de março

Em 2018 a história ainda estava a começar, agora tornou-se um conto de fadas. O enredo já era quase mitológico: uma distribuidora e produtora independente de filmes intrometia-se entre os estúdios gigantes de Hollywood, começando a mudar o cinema americano - cujas notícias de morte foram, afinal, manifestamente exageradas. Cinco anos e uma pandemia depois, eis o final feliz: a A24 acaba de limpar, numa só edição, as seis categorias principais dos Óscares, superando a Netflix e encostando a um canto grandes estúdios de Hollywood como os Walt Disney, Warner Bros, Sony, Universal Pictures e Paramount.

Para percebermos bem a dimensão do feito, basta atentar ao recorde: nunca na história um estúdio de cinema tinha conseguido conquistar todas as seis categorias principais dos Óscares (Melhor Filme, Melhor Realizador e as quatro categorias de interpretação). Que o feito tenha sido alcançado agora por uma produtora e distribuidora de filmes independentes, que nasceu há apenas uma década, torna tudo ainda mais épico.

Espectadores chateados, empreendedores criados
Há cinco anos, meia década depois da A24 começar a levar até as salas de cinema os primeiros filmes produzidos ou distribuídos por si, escrevíamos aqui que a empresa estava já "a mudar o cinema americano", na sequência da vitória de Moonlight nos Óscares e da estreia nas salas de cinema portuguesas de filmes como Um Desastre de Artista, de James Franco, e O Sacrifício de um Cervo Sagrado, de Yorgos Lanthimos.

Fazia-o, escrevíamos então, com filmes que cruzavam cinema de autor com cinema comercial, que tinham orçamentos bem mais modestos do que os blockbusters (maioritariamente entre 1 a 20 milhões, cerca de um décimo das maiores produções de Hollywood), que eram "mais vezes dirigidos por mulheres" do que os filmes de estúdios concorrentes e que arriscavam, colocando algumas celebridades do cinema em papéis inusitados e irreverentes.

O caminho vinha sendo feito, por esta produtora e distribuidora de filmes fundada por um trio de nova-iorquinos, Daniel Katz (ex-líder do grupo de financiamento de filmes arty da Guggenheim Partners), David Fenkel (ex-presidente de uma distribuidora independente) e John Hodges (ex-responsável por uma produtora indie), que viram na sua insatisfação de espectadores uma oportunidade de negócio (não é sempre assim que as grandes ideias surgem?). Em tempos, John Hodges, que entretanto até já saiu da A24, chegou a dizer à revista GQ: "Foi uma coisa do tipo: como poderíamos fazer isto de forma diferente [dos grandes distribuidores]? Normalmente eram conversas alimentadas a cerveja, rabiscos em guardanapos e um certo descaramento".

Um Óscar que arrepiou caminho

Moonlight veio, no entanto, mudar tudo – ou acelerar tudo, pelo menos. Em 2017, um filme com apenas quatro milhões de dólares de orçamento de produção tornou-se um sucesso portentoso, rendendo mais de 60 milhões de dólares em bilheteira (ou seja: as receitas foram perto de 15 vezes superiores aos custos) e vencendo o Óscar mais prestigiado, o de Melhor Filme. O maior concorrente do filme de Barry Jenkins a esta categoria, La La Land: Melodia de Amor – que ainda chegou a ser anunciado como vencedor por lapso técnico – teve um orçamento de produção de 30 milhões de dólares. Era, contas arredondas, o equivalente a fazer sete Moonlights.

Os elogios começavam a chegar de todo o lado: Colin Farrell, este ano nomeado pela primeira vez a um Óscar (não venceu), reconhecia por exemplo aos responsáveis destes estúdios um "olho" clínico "para pequenos filmes com histórias únicas, muito ricas, que sem eles não chegariam ao grande ecrã", James Franco elogiava a produtora e distribuidora por "conseguir pegar em algo pequeno e delicado e dar-lhe o apoio que outros não conseguem dar" e a realizadora Harmony Korine notava a capacidade da A24 para gerar entusiasmo em torno dos seus filmes indie: "Eles viram que o marketing era um ato criativo, que podia ser um entretenimento em si mesmo".

A produtora e distribuidora, porém, não parou. Depois de Moonlight, e de outros filmes como The Florida Project, Lady Bird, Um Desastre de Artista e O Sacrifício de um Cervo Sagrado, vieram Hereditário, de Ari Aster – que rendeu quase mais 20 milhões de dólares em receitas de bilheteira do que Moonlight -, Midsommar, do mesmo realizador, Uncut Gems, dos irmãos Safdie (com Adam Sandler como protagonista), First Cow – A Primeira Vaca da América e Minari, por exemplo, a maioria dos quais premiados.

Este ano, a A24 somou 18 nomeações
A esta temporada de Óscares a A24 chegou mais forte do que nunca. Com 18 nomeações, entre as quais para Aftersun (Melhor Ator, Paul Mescal), Close (Melhor Filme Internacional) e Causeway (Melhor Ator Secundário), já superara todas as outras produtoras e distribuidoras de filmes concorrentes, incluindo as "gigantes" da indústria cinematográfica de Hollywood. Na madrugada de esta segunda-feira, 13 de março, confirmaram-se as previsões e fez-se história: com Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo e com A Baleia, fez o que parecia impensável, arrebatando as seis categorias principais de Melhor Filme, Melhor Realização, Melhor Ator, Melhor Ator Secundário, Melhor Atriz e Melhor Atriz Secundária.

Mais impressionante ainda: Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, indiscutivelmente o maior vencedor desta cerimónia dos Óscares, já rendeu mais de 100 milhões de dólares em bilheteira, tendo tido um orçamento de produção inferior a um quarto desse valor (25 milhões). Entre os restantes nomeados para Melhor Filme, Avatar: O Caminho da Água, por exemplo, custou entre 350 a 460 milhões (perto de 16 vezes mais), Top Gun: Maverick, dos estúdios Paramount, custou 170 milhões de dólares (perto de 7 vezes mais), Elvis, dos estúdios Warner Bros, custou 85 milhões de dólares (mais do triplo) e Os Fabelmans, da Universal Pictures, custou 40 milhões de dólares (perto do dobro). Todos terminaram a noite (madrugada em Portugal) sem conquistar esta categoria ou, já agora, qualquer das categorias principais.

O futuro e um podcast para descobrir
Depois do sucesso de A Baleia e Tudo em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo, a produtora e distribuidora norte-americana de filmes independentes já tem outros filmes na calha. Ao longo dos próximos meses, chegarão às salas de cinema longas-metragens como Beau Is Afraid (de Ari Aster, com Joaquin Phoenix como protagonista), You Hurt My Feelings (de Nicole Holofcener, com Julia Louis-Dreyfus no elenco), Past Lives (estreia na realização da coreana-canadiana Celine Song), Jerry Lee Lewis: Trouble In Mind (de Ethal Cohen) e Problemista (de Julio Torres, com Tilda Swinton no elenco), entre outros. Mais tarde, chegarão outros, como Civil War, de Alex Garland, e Priscilla, de Sofia Coppola.

Quem estiver curioso com a história e os filmes desta produtora e distribuidora indie, pode ainda espreitar o The A24 Podcast, que em cada episódio junta personalidades do entretenimento à conversa: o último episódio, publicado a 28 de fevereiro, conta com Brendan Fraser e Michelle Yeoh (ambos recém-vencedores de Óscares), mas existem outros com, por exemplo, Mahershala Ali e Ramy Youssef, Daniel Kwan & Daniel Scheinert (realizadores de Tudo Em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo) e Daniel Radcliffe, os irmãos Safdie e Paul Thomas Anderson, Martin Scorsese e Joanna Hogg, Paul Schrader e Sofia Coppola e Barry Jenkins com Greta Gerwig.

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