Nos países nórdicos onde há neve e frio, as crianças estão mais habituadas a ir a pé para escola do que nos países do Sul como Portugal e Itália. Aqui, recorda a professora da Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade de Lisboa, os pais estacionam os carros à porta das escolas secundárias para os filhos não irem sozinhos. Rita Cordovil alerta que a cada geração que passa a autonomia e independência na mobilidade das crianças se tem vindo a perder e que isso vai fazer com que tenham mais dificuldades em tomar decisões quando crescerem. Os pais superprotegem os filhos e muitas vezes não os deixam brincar livremente.
Porque é que as crianças portuguesas estão cada vez menos autónomas?
Vivemos numa sociedade que tem uma forte aversão ao risco. Os pais, desde que engravidam, começam a ser bombardeados sobre que estímulos dar à criança para que ela se torne um adulto brilhante e há um grande ênfase nas competências cognitivas. Depois, a criança nasce e aparecem aquelas coisas loucas dos produtos da indústria da segurança infantil, como joelheiras para quando gatinha. Tem a ver com ideia de "coitadinha, a criança não se pode magoar". E há a perceção de que controlamos o desenvolvimento, mas o desenvolvimento não é como a receita de um bolo. Os pais estão a fazê-lo com a melhor das intenções, mas adiam demasiado a autonomia. A autonomia dá trabalho.
Porquê?
Hoje há um desequilíbrio nas horas de trabalho dos pais, que chegam exaustos a casa. Se começarmos pela autonomia a comer, por exemplo, a criança já consegue usar a colher e comer sozinha. Mas o que vai acontecer é que, no início, salpica tudo, paredes, ela própria. A decisão mais fácil é serem os pais a dar a papa. Mas a decisão mais acertada é deixar a criança fazer porcaria, porque ao longo da vida aprendemos fazendo porcaria. Tomamos decisões mais ajustadas se nos deixarem experimentar o mundo.
Quais são as consequências?
Fizemos um estudo no laboratório com bebés que obteve conclusões muito interessantes. Tentámos perceber o que distingue os bebés que já sabem agir de forma adequada numa situação de risco dos que não sabem. Ou seja, neste caso um bebé quando se aproxima a gatinhar de um precipício real ou de um com água [os bebés estão numa plataforma e seguros por um arnês], o que distingue aqueles que param dos que avançam.
Qual foi a conclusão?
O que percebemos em estudos deste género é que os bebés que tomam as decisões mais ajustadas são aqueles que já têm mais experiência a gatinhar, já experimentaram o mundo. Os bebés têm de ter tempo de chão, não podem estar sempre presos no carrinho. Veem-se nos centros comerciais, crianças de 4 e 5 anos num carrinho. Não é preciso, elas conseguem andar.
Têm de cair?
Têm de cair. Como é que começámos a andar? Foi depois de cair imensas vezes. Os pais têm de os deixar cair porque isso é importante. É claro que correr riscos não é o mesmo que abrir as varandas do 9º andar ou deixá-los sozinhas na piscina. As casas têm de ser pensadas para as crianças poderem explorar, não é a prendê-las em cadeirinhas ou em parques.
Podia dar exemplos de como está a diminuir essa autonomia?
O professor Carlos Neto diz uma coisa muito engraçada: "Uma criança saudável tem de ter os joelhos esfolados." E hoje em dia isso não é valorizado. As crianças já não sobem às árvores. E se um pai deixa uma criança subir às árvores, tem os outros a dizer: "Olhe, o seu filho está no cimo da árvore." Isto aconteceu-me. Há um julgamento social.
Qual é a importância dessa brincadeira livre?
As crianças têm agendas mais preenchidas que os adultos, com tantas atividades. Quando têm liberdade para brincar nos parques infantis os pais dizem: "Não subas ao escorrega, não te sujes." Se não se confrontam ali com o risco, que é um ambiente relativamente controlado, quando vai ser? Há parques infantis onde vemos os pais a fazer mais atividade física do que as crianças, porque estão ali a empurrar o baloiço quando já não precisam.
Porque não lhes dão autonomia?
Têm medo que eles se magoem, mas o risco é necessário. É mais fácil falar dos acidentes, daquele que partiu o braço, do que contabilizar as coisas positivas. Ou seja, o que ganharam em autonomia ao conseguir tomar decisões, ou em autoconfiança por terem conseguido subir à árvore. A perda de autonomia vê-se até quando vemos jovens a chegar à universidade de carro com os pais. E não será certamente porque o pai trabalha lá ao lado. Vê-se pais no dia da matrícula na universidade... A autonomia das crianças e jovens tem vindo a diminuir de geração em geração. É certo que as cidades estão muito diferentes, são desenhadas para os carros, mas é possível.
Esse medo pode ser controlado com a regra dos 17 segundos? Pode explicar?
Num dos projetos em que participámos, andámos pela Europa a ver boas práticas e uma das coisas que os noruegueses nos mencionaram foi a regra dos 17 segundos. "Digam aos pais e professores para quando querem dizer ‘não’ às crianças – há esta sociedade do "não": "não subas, não te sujes, cuidado" – esperem 17 segundos e olhem à volta. Depois de analisar se é mesmo preciso dizer ou fazer isso, é que agem." É preciso que as crianças testem os limites, resolvam os problemas sozinhas, tomem as suas decisões. Não podemos fazer tudo por eles e aos 18 anos dizer: "Agora vai tomar decisões sozinho e já podes votar."
Outra área que estuda é a mobilidade e a autonomia e Portugal é dos piores países nessa área?
Ao longo do tempo tem havido um decréscimo na independência e na mobilidade das crianças. Em 2012, fizemos parte de num estudo com 16 países, feito pelo Policy Studies Institute, em que perguntámos aos pais como é que os filhos iam para a escola. O que percebemos é que em Portugal. a geração destes pais, que tinham filhos com 8/9 anos, na idade deles só 9% ia de carro para a escola, e quase 90% a pé. Já os filhos deles, quase 60% iam de carro e cerca de 35% a pé. Mas dados mais recentes de outro estudo que fizemos agora, com a Federação Portuguesa de Futebol, mostra que piorou – 75% das crianças iam de carro e 11% a pé.
Que motivos há por trás disto?
Há um paradoxo que se vê no estudo de 2012. No ranking de independência e mobilidade Portugal ficou em 14ª ex aequo com Itália, só ultrapassados pela África do Sul. Os países do Norte da Europa dão mais autonomia às crianças. Onde neva, faz frio, o clima não é favorável a andar na rua, a criança de 6 anos deve ir sozinha, porque promove a autonomia. Em Portugal, choveu há dois dias, há poças na estrada, a mãe leva-o de carro porque o menino tem de chegar a horas à universidade. Damos desculpas.
Quais?
O trânsito. É certo que há mais acidentes em Portugal, mas também os há dentro do carro. Mas há outra questão que é o medo dos estranhos. O que distinguia as razões dos países do Norte dos do Sul era o medo dos estranhos. Mas se a criança se perder tem de saber a quem vai pedir ajuda. É contraproducente ter medo de todas as pessoas que estão na rua. Também temos a influência do caso Maddie e do caso Rui Pedro que fizeram com que uma geração de pais ficasse com muito medo do que pode acontecer às crianças. A juntar a isto temos canais a passar em loop estes casos. Há uma grande discrepância entre o que é a segurança real e a perceção da segurança.
Qual é a idade certa para ir a pé para a escola?
É a pergunta que me fazem sempre e a que não é possível responder. Depende da criança, do percurso para a escola, de inúmeros fatores. Se as cidades estivessem desenhadas como deve ser, era possível a partir dos 6 anos. Felizmente há cada vez mais iniciativas, de fechar ruas a carros ou de criar os comboios de bicicletas. Depois parece que hoje temos muito os dois extremos. O bom senso ficou diluído. Há pais que quase querem ter um Iron Man com 2 anos, puxam demais e há outros protegem tanto que não brincam com objetos mais afiados do que uma bola. Tem de haver um equilíbrio.
Quando falamos de mobilidade, as escolas têm um papel. Acha que a educação física é desvalorizada?
A educação física não funciona tão bem como devia no primeiro ciclo. Nessa altura, em muitas escolas, é o professor titular que dá educação física. E muitas vezes não dá... É muito importante haver educação física estruturada, As crianças têm de ter uma estimulação pensada para desenvolver as capacidades motoras, tem de ter orientação e feedback na aquisição das habilidades motoras fundamentais como correr, saltar ou lançar. A educação física devia assumir um papel ainda mais importante.