Pedro Chagas Freitas: "Viver a doença de um filho é uma experiência que nos destrói, mas que também nos reconstrói"
O escritor tem novo romance, conta que foi o "mais duro" de escrever, porque partilha a experiência hospitalar do filho. Mudou depois disso e quer tocar os leitores, garantindo que não sente a pressão dos best-sellers.
Pedro Chagas Freitas explica que "escrever foi uma forma de organizar a dor, de tentar compreendê-la." O escritor partilhou nas redes sociais o problema de saúde do seu filho Benjamin e ospostsemotivos tornaram-se virais. Agora, toda a experiência pela qual passou foi transformada em romance:O Hospital das Alfaces.
Em entrevista à SÁBADO, partilha o que o motivou a escrever este livro, que foi o mais difícil até hoje, porque o fez relembrar a época em que o seu filho esteve internado durante três meses. Benjamin sofre de uma doença rara, a deficiência de alfa-1 antitripsina, e precisou de um transplante de fígado. O escritor, um dos mais vendidos em Portugal (mais de 1 milhão de livros), partilhou a experiência nas redes sociais e os posts tornaram-se virais e com milhares de comentários. Agora quer mostrar aos leitores que ninguém está sozinho. "Muitas vezes, no buraco sem fundo da dor, sentimos que ninguém nos entende. Mas há sempre alguém que passou por algo parecido, que sentiu o mesmo desespero, que encontrou um caminho."
Escreve no livro: "quando se vive a doença de um filho, sabe-se que tudo o que fomos antes não existe, não vai voltar a existir; depois de viver a doença de um filho, somos o começo de nós outra vez." De que forma sentiu isso?
Morri e renasci com ele. Nunca mais fui, ou serei, a mesma pessoa. O que antes parecia grande tornou-se pequeno; o que antes parecia pequeno passou a ser tudo. Viver a doença de um filho é uma experiência que nos destrói, mas que também nos reconstrói. Nunca mais somos quem fomos antes. Talvez nos tornemos alguém mais inteiro, mais verdadeiro.
Partilhar a situação de saúde do seu filho e escrever sobre ela foi importante?
Escrever foi uma forma de organizar a dor, de tentar compreendê-la. E também de honrar o meu filho, a sua força, a sua coragem. Quando algo nos muda profundamente, temos duas opções: deixar que isso nos destrua ou transformar isso em algo maior. Escrever foi a minha forma de transformar.
Porque decidiu escrever este livro?
Foi um livro nascido da urgência de transformar o sofrimento em algo que pudesse ser entendido, partilhado. Quando passamos por algo tão profundo, sentimos necessidade de criar sentido para isso. Para mim, o sentido vem sempre pelas palavras. Este livro é um testemunho do que vivi, do que sentimos como família, do que aprendi sobre amor, resistência, medo.
Foi um livro duro de escrever?
Foi o livro mais duro que já escrevi. Cada palavra vinha carregada de emoção, de lembranças que ainda doem, de momentos em que não sabia se haveria amanhã. Não há forma de escrever sobre a fragilidade da vida sem sentir essa mesma fragilidade a cada página. Ao mesmo tempo, foi libertador. Escrever, de alguma forma, também cura.
Como o apresentaria?
É uma imersão sem limites na fragilidade e na força de ser um pai — e, no limite, na fragilidade e na força de ser uma pessoa inteira. É sobre a vulnerabilidade de saber que não controlamos nada, sobre a coragem de continuar mesmo quando tudo parece ruir. Acima de tudo, é uma história de, e sobre, amor. Sobre como o amor nos molda, nos destrói, nos reconstrói. Sobre como, no final, é ele que nos salva.
Há uma frase no livro que diz: "não sabia que os pais tinham medo." Porquê?
Cresci a achar que os pais eram inquebráveis. Achava que sabiam sempre o que fazer, que tinham todas as respostas. Até que me tornei pai. E percebi que a paternidade é, na verdade, um estado permanente de medo. Medo de errar, de falhar, de não proteger. Percebi que isso não nos faz fracos. Pelo contrário. O medo é a prova do amor. Só temos medo porque amamos.
Reflete sobre a relação com o pai, qual foi a maior mudança?
Percebi que ele fez o melhor que soube. O amor não sabe ser perfeito. Compreender isso mudou tudo. Foi um grande companheiro de vida. Amo tanto o meu pai. Nem a sua morte muda isso.
Como vê a paternidade hoje?
É um ato de coragem. Amar um filho é aceitar viver em constante vulnerabilidade. E é também, acima de tudo, o maior privilégio da vida.
Qual a importância dessa relação na estruturação de uma criança e de um adulto?
Gigantesca, inevitável. O amor dos pais é a base sobre a qual construímos tudo o resto. Tento respeitar isso em cada decisão que tomo. Falho muitas vezes. Dói muito.
Acha que é um pai muito diferente do seu?
Sim e não. O amor é o mesmo, mas os tempos ensinam-nos a ser pais de forma diferente. É uma luta constante, uma aprendizagem interminável.
Que mensagem quer que as pessoas tirem deste romance?
Quero que sintam que não estão sozinhas. Muitas vezes, no buraco sem fundo da dor, sentimos que ninguém nos entende. Mas há sempre alguém que passou por algo parecido, que sentiu o mesmo desespero, que encontrou um caminho.
O que é a emortia?
É sentir a dor do outro como se fosse nossa. É morrer um pouco para dar vida ao amor. É um conceito que inventei para traduzir essa experiência extrema de viver a dor de quem amamos como se estivesse dentro de nós. Quando somos pais, percebemos que a felicidade e o sofrimento do nosso filho são nossos também. Quando ele sofre, sentimos esse sofrimento como se fosse físico. A emortia é isso: uma fusão entre o eu e o outro que nos transforma para sempre.
"A paternidade é, na verdade, um estado permanente de medo. Medo de errar, de falhar, de não proteger. Percebi que isso não nos faz fracos. Pelo contrário. O medo é a prova do amor"
Pedro Chagas Freitas
Cargo
O que foi mais difícil partilhar?
O medo. A incerteza de não saber se o amanhã existiria para o meu filho. Escrever sobre isso foi abrir feridas que talvez nunca cicatrizem. Há momentos que nos marcam de uma forma tão profunda que nunca desaparecem completamente. Mas também foi importante. Esconder a dor não a faz desaparecer. Se ao partilhá-la eu puder ajudar alguém a sentir-se menos sozinho, então já valeu a pena.
"O riso é como um remédio", em que situações sentiu isso?
Lembro-me de estarmos no hospital, rodeados por máquinas, por incertezas, e de ele fazer uma piada, uma reflexão filosófica como só ele sabe fazer, desconcertante — e fazer-nos soltar uma gargalhada. Naquele instante, tudo parecia menos pesado. O riso tem esse poder: não apaga a dor; mas lembra-nos de que ainda há alegria, de que ainda há vida. Isso pode ser o que basta para seguirmos em frente.
No seu livro diz: "a impotência é a colisão inevitável entre o desejo e a limitação, um campo de batalha." Como podemos aprender a lidar com isso?
Temos de aceitar que não controlamos tudo. Temos de aprender a viver apesar do que nos escapa. Temos de perceber que nem sempre podemos mudar as circunstâncias, só podemos escolher como reagimos a elas. A impotência é uma das sensações mais difíceis de aceitar. Queremos fazer algo, salvar, resolver. Ali, naquele contexto de vida no hospital para um pai, o que podemos fazer é estar. Por incrível que pareça, pode ser o mais importante de tudo.
Como é a vida dentro dos hospitais? Que momentos mais o marcaram?
É uma montanha-russa avassaladora, da qual pensamos que jamais iremos conseguir sair. Cada sorriso numa cama de hospital é um milagre. Há um silêncio pesado nos corredores, há medo nos olhos das pessoas. Também há uma força imensa. Há crianças que ensinam mais sobre coragem do que qualquer adulto. O que mais me marcou foram os gestos simples: uma mão dada, um olhar de cumplicidade, um abraço entre pais que não se conheciam, mas que compartilhavam a dor.
Como escolhe os temas sobre os quais escreve?
Eles escolhem-me. Escrevo sobre o que me atravessa, o que me consome. Escrevo porque não sei viver sem escrever.
Como é a sua rotina de escrita?
Escrevo sempre que a vida me obriga a escrever. Costuma ser todos os dias.
Sente a pressão de ser um best-seller?
Não. Escrevo para me conhecer. O que sinto é orgulho em todas as pessoas que escolhem os meus livros para, também elas, se conhecerem melhor.
Tem uma presença forte nas redes sociais, acha que isso influencia a forma como escreve?
Não. Escrevo sempre com verdade. Isso é o que importa. Acredito que quem me lê sente essa verdade. Os leitores não são incompetentes. Têm uma sensibilidade muito grande.
Escreveu o livro infantil O rei Tigão. O seu filho ajudou-o a escrever o livro?
Foi inspirado nele, nos peluches dele, que o acompanharam por todos os cantos daquele hospital, entre exames, blocos operatórios e angústias — e todas as receitas do livro serão para ajudar outros pais e filhos que venham a estar internados na mesma Unidade em que nós estivemos. Ele ensinou-me que todas as histórias podem ter um final feliz. Queremos ajudar a que haja todas as condições para que muitas mais sejam assim.
Qual é a melhor reação de um leitor?
O silêncio emocionado. Quando um livro toca a alma, faltam as palavras. Não há melhor elogio.
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