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Entrevista

Joaquim Vieira: "O André Ventura não tem a consistência ideológica de Salazar. É um cata-vento"

Carlos Torres 06 de abril de 2024 às 10:00

Os defeitos e os segredos de Salazar, os jogos políticos, o apego ao poder, as comparações com o regime de Franco em Espanha. Joaquim Vieira escreveu a biografia de Salazar, que sai gratuitamente com a SÁBADO, e fala sobre o ditador, que considera "um génio político" - só assim se explica que tenha ficado 40 anos no poder -, abordando ainda as comparações com o Chega e com André Ventura.

Joaquim Vieira é o autor da primeira biografia da coleção Retratos Políticos, que a SÁBADO vai oferecer gratuitamente na compra da revista nas próximas quatro semanas, contando a vida e os principais aspetos dos sucessivos governos de Salazar, que ficou no poder entre 1928 e 1968, primeiro como ministro das Finanças e depois como Presidente do Conselho. A seguir a Salazar, seguem-se as biografias de Marcello Caetano, da autoria de António Araújo, de Álvaro Cunhal (de Adelino Cunha) e ainda de Sá Carneiro (escrita por João Pacheco).

Joaquim Vieira, de 73 anos, foi jornalista, passando por RTP, Expresso e Visão, e já escreveu vários livros, incluindo as fotobiografias de Salazar, Marcello Caetano e Almada Negreiros ou ainda Mário Soares: Uma Vida, Francisco Pinto Balsemão - o Patrão dos Media que foi Primeiro-ministro e José Saramago - Rota de Vida. Em conversa com a SÁBADO, ele fala sobre a biografia de Salazar, que define como "um génio político" - o que explica porque se manteve 40 anos no poder. E fala ainda do Chega e dos perigos para a democracia.

O que é que os leitores da SÁBADO podem esperar desta biografia?
É uma síntese biográfica, que apresenta uma perspetiva sobre as grandes linhas de orientação dos seus governos, procurando explicar a durabilidade desses mesmos governos; porque uma das grandes características de Salazar é o facto de ele ter conseguido aguentar ficar no poder durante 40 anos, o que é raro em Portugal pois, como diziam os romanos, é um país que não se governa nem se deixa governar – aliás, como se está a ver agora na Assembleia da República. E o Salazar contrariou essa tendência, até porque se vinha de um regime de grande instabilidade na I República, em que tinha havido 45 governos em 16 anos.

E saiu sem ser derrubado.
Sim, é outra coisa curiosa, Salazar nunca foi derrubado, apesar do descontentamento, das revoltas que o governo dele possa ter desencadeado nos portugueses, sobretudo na fase final, ele acabou por sair do poder depois de ter caído de uma cadeira, já com quase 80 anos. E também é curioso como ele conseguiu fazer os seus jogos políticos ao longo do tempo para conseguir manter-se no poder durante 40 anos. Tudo isso se reflete neste livro. Outra coisa: como tivemos um resgate da troika recentemente, acabei por salientar esse aspeto, porque Salazar ascendeu ao poder para resolver o crónico problema financeiro português, as contas do Estado, o défice, e muita da receita que ele aplicou logo no início para resolver o problema financeiro encontra paralelismo na receita da troika. Achei curiosa essa coincidência, porque no fundo andamos sempre à volta dos mesmos problemas, seja em ditadura seja em democracia, é uma coisa que vem desde o século XIX, e no fundo é o problema do desenvolvimento português, da relação que o País tem com as Finanças, que nunca foi resolvido satisfatoriamente e continua a atormentar a nossa vida coletiva.

Qual foi o segredo para Salazar se manter tanto tempo no poder? Foi ter uma ditadura "branda", como se costuma dizer?
Sim… quer dizer, não diria branda, porque a ditadura teve aspetos repressivos muito fortes, como a criação do Tarrafal – uma espécie de campo de concentração -, a perseguição política a quem era da oposição, a PIDE, as cadeias, a tortura, a violação das próprias leis que o regime tinha criado – que eram garantias que depois não garantiam coisa nenhuma aos cidadãos -, o assassínio de alguns opositores políticos, que se saldou por algumas dezenas. Não foi uma repressão tão extensa como em Espanha, aqui ao lado, o regime espanhol perseguiu mais pessoas, causou mais mortes, o país também é maior, e como a ditadura espanhola estava assente nos destroços, no rescaldo de uma guerra civil, o gene da violência estava muito incutido na sociedade espanhola, não tanto aqui em Portugal.

E Franco, tal como Salazar, também não é deposto.
Sim, o Franco morreu de doença, e foi por isso que o regime mudou em Espanha, mas a verdade é que o Franco era militar e o Salazar era um professor catedrático – é por isso que eu subintitulo a biografia como "A ditadura de cátedra". Essa característica civil, apesar de ele se apoiar nos militares, terá tornado a ditadura em Portugal mais fácil de "engolir" para muita gente. O segredo dele baseou-se em duas componentes: por um lado, fazer um jogo de equilíbrios com as várias forças políticas que podiam apoiar o regime, os monárquicos, os integralistas, os conservadores, os militares, os católicos… Esta base social de apoio, que era extensa, garantiu alguma segurança e estabilidade ao Governo de Salazar. E por outro lado, a questão repressiva, o aparelho policial, a censura, a perseguição a quem expressava ideias diferentes, aos opositores políticos… a quantidade de pessoas que foram colocadas na cadeia, que foram torturadas e julgadas em tribunal plenário… Essas foram as duas componentes, os dois pés em que se baseou a ditadura de Salazar para durar o tempo que durou.

Começa o livro a dizer que Salazar "foi um génio político como raramente houve em Portugal". Quais foram as maiores qualidades e os maiores defeitos do homem e do político?
Digo "génio político" porque ele, dizendo que não era político (aliás, há políticos da atualidade que têm o mesmo discurso), tinha uma estratégia política, e que foi jogar com os vários centros de poder, às vezes lançando-os uns contra os outros para ele poder sobreviver. Havia uma estratégia bem definida, porque se Salazar não fizesse esse jogo, possivelmente haveria alguma força que o poderia derrubar, conspirando ou afrontando-o diretamente. E ele sempre conseguiu fazer um jogo de equilíbrios, tanto a nível nacional como internacional, que lhe permitiu sobreviver no poder tanto tempo num país com tantos problemas e com tanta propensão para conspirações e para tentativas de derrubar o regime, que aconteceram durante a ditadura de Salazar. E que começaram logo no final dos anos 20, quando ele ainda era ministro das Finanças mas já tinha uma visão global de Governo, tanto que intervinha em matérias que iam para além da competência do ministro das Finanças. Mas houve várias conspirações, por exemplo nos anos 30, a fase do reviralho, havia conspirações umas atrás das outras, e ele foi sempre sobrevivendo. Depois houve mais nos anos 40 e 50, no princípio dos anos 60… houve sempre essas constantes conspirações e tentativas de derrubar Salazar, até através da via militar, e ele conseguiu sobreviver a todas. Portanto, esses 40 anos de vida política no poder por parte de Salazar só podiam ser fruto de um génio político, porque mesmo com o aparelho repressivo, e isso foi fundamental, às vezes há revoltas que deitam abaixo regimes e governos.

E quais foram os maiores defeitos de Salazar?
Para mim, o maior defeito de Salazar foi não ter confiado no povo português e ter tido necessidade de montar um aparelho repressivo extenso para abafar a expressão, a opinião, a existência de problemas na sociedade, perseguir toda a gente que tinha ideias diferentes a nível de governação, sanear a função pública.

Salazar resistiu a ser ministro, mas depois nunca mais quis largar o poder.
Ele convenceu-se que era o único que poderia governar, julgou-se insubstituível, imortal, pensava que ia governar para sempre e não preparou a sua sucessão – e isto é um grande defeito também. O que revela pouca sensibilidade e pouco interesse pelo futuro do país, porque quem está no poder tem de garantir o futuro, e ele se pensou num sucessor, como terá pensado, e aí especula-se que terá pensado em Marcello Caetano nos anos 50, mas essa hipótese gorou-se em 1958, ele afastou Marcello Caetano e a partir daí era o vazio.

A fase final foi de decadência.
Sim, a década de 60 é a da decadência, Salazar desligou-se muito da realidade e estava a viver num mundo só dele, o que acontece muito a quem tende a perpetuar-se no poder, essa alienação. E também não teve a sensibilidade para pensar que era preciso negociar uma saída para a guerra colonial, que previsse a independência das colónias, foi uma coisa que nunca lhe entrou na cabeça, manteve-se absolutamente intransigente em relação a isso, numa época histórica em que já não havia a possibilidade de manter o império colonial ele inventou coisas como, por exemplo, que era uma nação única e indivisível, deixou de chamar colónias e eram províncias ultramarinas, tal como o Minho ou o Algarve. E dizia às Nações Unidas que não havia territórios sob tutela, "isto é um único país e um único território desde o Minho até Timor". E isso revela como a certa altura Salazar se desligou da realidade. Salazar não mudou em 40 anos, ao contrário da realidade, porque a realidade evoluiu, o contexto geopolítico nacional mudou, até pelas tendências importadas do estrangeiro. E se ao fim de 40 anos as pessoas não mudam, o final não vai ser feliz e penso que ele intuiu que as coisas não iam acabar bem, como confessou a várias pessoas próximas no fim da vida, antes de cair da cadeira. Salazar achava que depois dele não ia haver ninguém capaz, que o poder ia cair no vazio, que o país ia mergulhar no caos, mas Portugal não mergulhou propriamente no caos, sobreviveu depois dele.

"Deus, Pátria e Família" era o lema de Salazar e também agora do Chega. Acha que há muitos saudosistas de Salazar entre os votantes do Chega ou é mais um voto de protesto, como se tem dito?
Não acho que haja muitos saudosistas de Salazar na sociedade portuguesa. Há pessoas que talvez tenham saudosismo de algo que não conheceram, e só por não terem conhecido é que podem ter esse saudosismo, porque eu gostava que essas pessoas tivessem vivido na realidade aquele período para fazerem as comparações. Uma coisa é fazer a narrativa do que era o regime e outra coisa é ter vivido no período do regime, porque nenhuma narrativa, por mais fiel, realista e autêntica que seja, pode substituir a vivência do que foi o salazarismo. E quem viveu nesse período, com a exceção de um ou outro que talvez fosse privilegiado nessa época, não vejo que a sociedade portuguesa seja muito saudosista, apesar de o Salazar ter ganho aquele concurso da figura histórica portuguesa mais importante, na RTP, mas isso são fenómenos que se criam, virais, nas redes sociais. É aquele desejo, que existe também na votação atual do Chega, que é o desejo de pessoas que estão um bocado à margem do processo político, que na maior parte do tempo se abstêm, e é por isso que a abstenção desde o 25 de Abril tinha vindo sempre a crescer. São pessoas que olham para isso um pouco desconfiadas, e que também são elas próprias marginalizadas, que não estão satisfeitas com a sua vida, e, portanto, não sentem sequer vontade de participar no processo político. E agora votaram, num partido que defende esses valores do salazarismo, embora aquilo seja uma coisa muito misturada de valores, de ideologias, e não direi que o Chega é um partido 100% salazarista, porque se se assumisse como tal, não teria a votação que teve. Mas o Chega teve esse mérito de ir buscá-los à abstenção, eram pessoas que não se identificavam com nenhum dos partidos que existiam, e que encontraram no Chega, com a sua marginalidade, essa oportunidade de expressarem o seu protesto e a sua insatisfação. Acredito que possa haver pessoas insatisfeitas com o sistema e que foram votar no Chega, mas este 1 milhão e 100 mil, ou 200 mil pessoas votantes no Chega não são salazaristas, a esmagadora maioria não são salazaristas e não conhecem nem sabem o que foi o salazarismo – e tenho a certeza que não desejariam regressar a um regime salazarista, até porque há muitos jovens e a memória não existe. Votar no Chega é outra coisa, é o desejo de desafiar, de chatear, de incomodar… "Como vamos incomodar estes tipos que estão no poder?"

Portugal poderá ter um novo Salazar?
Não, até porque a integração europeia não nos vai permitir ter outro Salazar. Embora tenhamos na União Europeia estados-membros como a Hungria ou a Polónia, mas por exemplo na Polónia havia uma ameaça à democracia e o eleitorado superou isso, ao votar numa alternativa democrática nas últimas eleições na Polónia. Mas se houver uma deriva iliberal em Portugal, tal como há na Hungria atual, e estamos a falar em teoria, acho que os portugueses têm um apego muito grande à democracia, porque percebem que o regime democrático é muito melhor que a ditadura que o antecedeu. Agora, se houver uma crise muito prolongada, se houver permanentes eleições, governos minoritários, quedas de governos e por aí fora, como houve na I República, as pessoas podem cansar-se e pensar: precisamos de uma coisa mais estável, e então vem uma ditadura, como em 1926, que depois acabou por levar Salazar ao poder. Mas a verdade é que a União Europeia vai impor limites, e sair da UE também não é a solução, isso já se percebeu que seria prejudicial, como aconteceu com o Brexit. O Brexit é uma enorme vacina para todos aqueles que pensavam que sair da UE era a solução, até a própria Marine Le Pen em França, ou a Giorgia Meloni em Itália… A não ser que a própria UE venha a acabar, isso seria uma catástrofe geopolítica, mas a verdade é que não estamos assim tão longe disso, com todas as contradições que há atualmente na UE, mas excluindo o cenário mais catastrofista, não acredito que haja potencial para se instalar um novo Salazar em Portugal.

E André Ventura também não poderá ser esse novo Salazar?
Não, ele não tem a consistência ideológica que tinha Salazar. O André Ventura é um cata-vento que anda à procura das ideias que melhor podem satisfazer as suas ambições políticas. Ele descobriu que era por ali o caminho, mas tanto pode dizer uma coisa num dia como uma coisa diferente no dia seguinte. E Salazar não era assim, tinha uma coerência ideológica muito grande, que estava baseada no catolicismo social. O próprio meio onde o Salazar cresceu, estudou e se formou, em que desenvolveu a sua mentalidade, na Beira Interior, no seminário de Viseu, um meio que solidificou estas ideias e que foi sempre o seu campo ideológico, embora ele se tenha afastado um bocado da Igreja nos tempos finais, ficou muito desiludido porque os católicos deixaram de o apoiar, até se dizia que ele tinha perdido a fé nos últimos anos de vida, mas o essencial do seu conservadorismo ideológico manteve-se sempre. E não vejo isso em André Ventura. Ele é muito inconsistente, e mais tarde ou mais cedo poderá ser vítima dessa inconsistência.

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