Abuso no acesso ao SNS por estrangeiros? O que propõem os partidos para mudar a lei depois da denúncia da SÁBADO
Reportagem da SÁBADO sobre as redes que trazem grávidas estrangeiras para dar à luz no Serviço Nacional de Saúde desencadeou uma série de propostas - do Chega, PSD e CDS, IL e PS - para mudar o acesso ou monitorizar a procura. Só até setembro, mais de 45 mil estrangeiros não residentes foram atendidos no SNS sem terem seguros ou forma de pagar.
A 30 de novembro, aSÁBADO revelava a existência de redes organizadasque têm como missão trazer grávidas estrangeiras para dar à luz no Serviço Nacional de Saúde (SNS), em segurança e sem qualquer custo. Logo a 3 de dezembro, o Chega apresentou um conjunto de diplomas que querem mexer no acesso à saúde, mas também na lei da nacionalidade, cuja discussão ficou agendada para quinta-feira, 19 de dezembro, depois foi a vez do PSD e CDS anunciarem um projeto de lei, que esperam também seja discutido no mesmo dia. O PS avançou com uma recomendação ao governo e a IL também vai fazer o mesmo. Afinal o que está em causa?
Como começou o caso?
O Repórter SÁBADO denunciou redes que trazem estas mulheres para terem os filhos em Portugal, em segurança e com a garantia de um passaporte nacional. Chegam sem número de utente e sem contribuições feitas no nosso país têm mesmo assim acesso aos cuidados do SNS, recorrem a uma rede de moradas que lhes são facultadas por quem gere estas redes e que são dadas no acesso ao serviços médicos.
O presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) admitiu na quarta-feira passada, 11 de dezembro, no parlamento que as medidas para garantir que os estrangeiros não residente paguem os cuidados no SNS "são inócuas" por causa das redes organizadas. "Estas medidas são inócuas nos casos em que o que está em causa são redes informais organizadas que facilitam a vinda ao nosso país de estrangeiros que só pretendem uma utilização sem custo para os próprios", disse André Trindade.
O mesmo admitiu o primeiro-ministro, no debate quinzenal, na quinta-feira, 12, dizendo que há "um problema" no acesso ao SNS, "com alguns cidadãos estrangeiros que procuram uma resposta que o Estado português de boa-fé garante, em virtude de redes organizadas e, portanto, com princípios de fraude que lhes estão subjacentes, para aproveitar o humanismo das nossas leis."
Quantos não residentes foram tratados em Portugal?
Os dados da Inspecção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) que apontam para que entre 2021 e setembro de 2024, quase 330 mil pessoas estrangeiras, não residentes, foram atendidas dos serviços de urgência hospitalares do SNS. Um número que tem vindo em crescendo: 46.091 em 2021, 89.371 em 2022, 102.182 em 2023 e 92.193 até ao final de setembro.
Destas, não tinham seguros, protocolos ou convenções internacionais pouco mais de 140 mil pessoas, ou seja, 42,8% do total. Também aqui se regista um aumento sustentado a cada ano: 16.454 em 2021, 35.955 em 2022, 43.264 em 2023 e 45.476 até ao final de setembro.
O que quer o Chega?
O Chega foi o primeiro partido a avançar com propostas, a 3 de dezembro. Para o partido de André Ventura o objetivo é travar o crescimento do "turismo de saúde" que, diz, tem "vindo a ganhar uma proporção inusitada" em Portugal nos últimos anos.
O Chega propõe duas alterações à Lei de Bases da Saúde para que passe a estipular que "os nacionais de países não pertencentes à União Europeia que não sejam residentes não são considerados beneficiários do SNS, mas têm direito de acesso ao SNS mediante o pagamento dos serviços usufruídos". O partido pretende ainda que a lei deixe de garantir que podem beneficiar do SNS cidadãos "nacionais de países terceiros ou apátridas, requerentes de proteção internacional" ou ainda migrantes sem a respetiva situação legalizada, acrescentando contudo que passam a poder aceder ao serviço "a pessoas a quem foi concedido direito de asilo".
Já a proposta de alteração ao Estatuto do SNS vai no sentido de que este passe a estipular que "as pessoas que não são beneficiárias do SNS, nomeadamente os nacionais de países terceiros ou apátridas, requerentes de proteção internacional cujo pedido ainda não foi deferido e migrantes sem a respetiva situação legalizada, podem aceder ao SNS mediante o pagamento dos serviços prestados e em situações de emergência médica".
Estas propostas vão ser discutidas na próxima quinta-feira no parlamento.
O que propõem PSD e CDS?
Esta semana, foi a vez dos partidos que compõem o governo apresentarem um projeto de lei para alterar a forma como os estrangeiros não residentes podem aceder ao SNS. A proposta é alterar a base 21 da Lei de Bases da Saúde aprovada em 2019 por PS, PCP e BE, que prevê como "beneficiários do SNS, os nacionais de países terceiros e migrantes, ainda que sem a respetiva situação legalizada". Os dois partidos argumentaram, na apresentação da iniciativa, a 12 de dezembro, que esta retoma uma proposta efetuada em 2018 pela Comissão de Revisão, então presidida pela socialista Maria de Belém Roseira, mas que não foi incluída no diploma.
Esta proposta retira da lista dos beneficiários os migrantes sem situação legalizada, passando a constar, além dos cidadãos portugueses, "os cidadãos em situação de permanência regular em território nacional ou em situação de estada ou em situação de residência temporária em Portugal, que sejam nacionais de Estados-Membros da União Europeia ou equiparados, nacionais de países terceiros, bem como apátridas ou requerentes de proteção internacional", conforme explicou na apresentação Miguel Guimarães, deputado do PSD e ex-bastonário dos médicos.
Assim, "o acesso de cidadãos em situação de permanência irregular ou de cidadãos não residentes em território nacional implica a apresentação de comprovativo de cobertura de cuidados de saúde, bem como a apresentação de documentação considerada necessária pelo Serviço Nacional de Saúde para adequada identificação e contacto do cidadão". O antigo bastonário da Ordem dos Médicos ressalvou que tal não se aplica a "situações urgentes ou vitais para as pessoas".
O PSD e o CDS têm a expectativa que este projeto de lei possa ser debatido no parlamento já na quinta-feira, caso o Chega aceite inclui-la na ordem do dia da discussão que o partido agendou sobre "Turismo de Saúde".
As propostas do PS e IL
Perante estas propostas, o PS reagiu na sexta-feira, 13 de dezembro, anunciando que tinha entregado um projeto de resolução (sem força de lei) que recomenda ao Governo a monitorização ao acesso de estrangeiros ao SNS, que detalhe "o tipo de tratamento, país de origem, documentação apresentada, nível de complexidade, região, custo associado, entidade financeira responsável, situação de cobrança".
O projeto de resolução do PS pretende saber "exatamente qual é a utilização do SNS por utentes estrangeiros, dividindo designadamente o que são turistas, imigrantes em situações legais e imigrantes que ainda não têm a sua regularização concretizada", explicou a deputada Mariana Vieira da Silva. "Pretendemos também saber a que tipo de cuidados de saúde é que estes imigrantes acedem, se é a situações de urgência, que qualquer turista pode ter um acidente ou um agravamento da sua condição de saúde", referiu a antiga governante socialista.
Segundo o PS, "sem dados, governamos apenas sobre perceções e corremos o risco de não resolver os problemas. O projeto apresentado pelo CDS e pelo PSD não resolve os problemas que procura resolver e cria novos problemas à saúde pública em Portugal". A deputada socialista sublinhou que a exclusão do acesso ao SNS de migrantes com situação por regularizar pode aumentar, por exemplo, a disseminação de doenças infetocontagiosas.
A Iniciativa Liberal (IL) também anunciou que entregou também um projeto de resolução, mas desta feita para recomendar ao Governo que sejam cobrados aos cidadãos estrangeiros os seus custos no SNS antes da prestação dos cuidados de saúde não-urgentes, defendendo também incentivos à cobrança. Os liberais defendem ainda que seja assegurado "o acesso aos cuidados de saúde pela população imigrante, em situação de comprovada insuficiência económica, que tenha iniciado o seu processo de regularização de residência".
Isto é turismo de saúde?
Para o deputado do PSD Miguel Guimarães estes casos não se enquadram no chamado fenómeno de "turismo de saúde". Aquando da apresentação da proposta dos sociais-democratas, o médico defendeu que este fenómeno "não tem nada a ver com a imigração, já que se refere a estrangeiros não residentes em Portugal, nem se confunde com o chamado turismo de saúde, pois trata-se de uma utilização abusiva do SNS".
Também a ministra da Saúde distinguiu esta realidade do turismo de saúde - estrangeiros que procuram outros países para aceder a tratamentos, mas de forma legal, programada e custeada pelos próprios ou por seguros de saúde. "É uma matéria sensível, mas temos que distinguir duas dimensões. Uma coisa é a questão das migrações, e o Governo tem um plano para as migrações, uma matéria interministerial (…), outra coisa é a questão do "turismo de saúde", que tem alguns contornos que têm que ser analisados e investigados muito bem", afirmou Ana Paula Martins.
Obrigar a pagar e só atender em caso urgente são a solução?
Para o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Xavier Barreto, a resposta é não. Em declarações ao Expresso o responsável explicou que exigir garantias de pagamento, como querem os partidos do governo, "altera o princípio e faz sentido, mas, na prática levanta dúvidas". Isto porque só é possível exigir esse comprovativo de pagamento em casos programados, todos os casos urgentes serão atendidos primeiro, sem essa verificação. Não alterando, por isso, a prática atual que se tem mostrado pouco eficaz: "Já tratamos todos os casos urgentes e já tentamos depois cobrar os cuidados, enviando as faturas. Enviamos a fatura para o sistema de saúde do doente que, claro, não paga."
Também o atual bastonário dos Médicos, Carlos Cortes, mostrou as suas dúvidas da eficácia das medidas na contenção deste uso abusivo, lembrando que os médicos têm a obrigação de tratar qualquer pessoa que precise de cuidados de saúde, "independentemente da sua raça, da sua nacionalidade e das múltiplas variáveis que podem acontecer".
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