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António José Vilela
09.04.2021

Era uma vez o 8 e o 80

Aconteceu o que já se previa: o juiz implodiu a Operação Marquês. Reduziu a cinzas uma investigação de anos. No fim fica a pergunta: e todo o dinheiro suspeito que andou por aí?


E pronto. É assim que se implode um processo, uma investigação de anos arrasada durante pouco mais de 3 horas. Ainda sob a forma de resumo jurídico, conforme Ivo Rosa destacou perante a plateia que tinha à frente e toda a outra que acompanhava em direto pelas televisões e algumas rádios. Porque os argumentos do juiz, os argumentos completos, estão fisicamente em 21 volumes. Eram 18h 01 quando o juiz de instrução da Operação Marquês disse: "Terminou aqui a decisão do tribunal".

E a decisão foi arrasadora para o Ministério Público, volto a frisar. O juiz não se limitou a destruir praticamente toda a acusação, que apontava largas dezenas de crimes a José Sócrates, ao amigo Carlos Santos Silva, a Armando Vara, Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro e muitos outros. Fez mais. Viu indícios de crimes na distribuição inicial da Operação Marquês no próprio Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), criticou fortemente os investigadores pela forma como fizeram a investigação, pela leitura que fizeram de factos, pela forma como recolheram e interpretaram alguns testemunhos e até pelo tipo de crimes com que indiciaram vários suspeitos como Bava e Granadeiro.

Durante longos minutos, Ivo Rosa foi qualificando a acusação com epítetos fortes: "falta de rigor", "sem conteúdo; "sem provas", "total incoerência", "completamente inócua", "nenhuma prova direta", "fantasia", "pura especulação". Ivo partiu dos factos relatos pelo MP e associados às transferências de dinheiro encontradas, os investigadores fizeram o contrário. Andaram a seguir o dinheiro e arranjaram factos para o explicar. No fim, as duas versões que agora temos à frente, uma espécie de 8 e 80, são certamente difíceis de perceber pela generalidade dos portugueses. 

Num caso, não há crimes ou então já prescreveram, noutros, o que não faltam são crimes e comportamentos criminosos e aviltantes. Depois de sete anos a ouvir falar da Operação Marquês, o périplo vai continuar. O Ministério Público vai recorrer para que seja a Relação de Lisboa dirimir quem tem razão, qual destes 8 ou 80 são verdadeiros para ir a julgamento, qual destas versões tem sentido. Ou se alguma delas tem. E, já agora, para que se perceba de vez porque é que declarações de ministros, assessores e amigos de Sócrates são valoradas por uns (o juiz) e não por outros (investigadores do MP) e outros testemunhos como os de Hélder Bataglia, do gestor de fortunas Michel Canals e do empresário Paulo Azevedo também entram no jogo das interpretações consoante os olhos que as avaliam.

É imperioso que se perceba o que aconteceu, que explicação existe para tantos milhões de euros encontrados a cirandar em envelopes, de conta em conta, de offshore em offhore. É necessário que se perceba, que percebamos todos, aquilo que aconteceu realmente. Que o resultado disto tudo não seja apenas uma ilusão de censura sobre a "manipulação do aparelho de Estado" ou o "mercandejar com o cargo", expressões do juiz dirigidas a Sócrates para qualificar as evidências de códigos ao telefone, esquemas com envelopes, pagamentos de despesas próprias e de outros durante anos a fio.

Para Ivo Rosa, o mais importante processo crime da justiça portuguesa deve acabar em quatro julgamentos individuais de cinco acusados. E em meia dúzia de alegados crimes de branqueamento de capitais (subsequentes a um crime de corrupção que o juiz diz já estar prescrito para Sócrates) e de falsificação do antigo primeiro ministro e do amigo Santos Silva. E pouco mais do que isso. Aguardam-se os novos capítulos desta novela da vida real.

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