A segunda tragédia de Camarate
No rescaldo das resistências do poder judicial, o poder legislativo (aqui como sucedâneo de poder político) ripostou: alterou-se o regime legal. E quando antes era obrigatória a suspensão dos trabalhos das comissões parlamentares de inquérito, passou-se a prever a mera possibilidade.
No âmbito daComissão Parlamentar de Inquérito para verificação da legalidade e da conduta dos responsáveis políticos alegadamente envolvidos na prestação de cuidados de saúde a duas crianças (gémeas) tratadas com o medicamento Zolgensma– vulgarmente chamada como Comissão ao Caso das Gémeas –, os partidos aí representados e os seus deputados – honra lhes seja feita – têm potenciado diversos debates sobre temas jurídicos de grande interesse (pelo menos para um aborrecido apaixonado por essas discussões), que vão do núcleo duro dos direitos de defesa dos arguidos ao poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito. Pouco ou nada se menciona sobre o propósito constitucional e legalmente pensado para as comissões – e porque será …–; meia-volta aborda-se a prestação dos inquiridores e dos inquiridos; e muito – muito mesmo – se diz, se escreve e se fala sobre o que as comissões podem ou devem fazer e o que os seus visados se devem, ou não, sujeitar.
Há sensivelmente duas semanas, na sequência de uma iniciativa do partido Chega para aceder às comunicações do Presidente da República, soube-se queo Presidente da Assembleia da República decidiu pedir um Parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República. Tenho a certeza de que o Presidente da Assembleia da República sabe antemão a resposta (porque é óbvia) à questão que colocou. Aliás, suspeito que o pedido se deva apenas àinusitada conclusão do auditor jurídico da AR– que, por coincidência, acumula funções como membro do mesmo órgão que irá agora dar o Parecer solicitado –, de que as comissões parlamentares de inquérito poderiam ordenar, sob cominação da prática de um crime de desobediência, a entrega de comunicações eletrónicas, sem intervenção prévia de um juiz. Tivesse a conclusão sido a que se impunha – pela correta aplicação do direito, entenda-se – e nem era preciso de um Parecer.
Logo após o surgimento da Constituição de 1976, na primeira lei que definiu o regime das comissões parlamentares de inquérito (aLei n.º 43/77, de 18 de junho), dizia-se que estas "gozam de todos os poderes de investigação das autoridades judiciais". Numa formulação semelhante e pouco oscilante, essa definição de competências das comissões manteve-se nessa descrição textual até 2007 (isto é, até bem depois da vigência do segundo regime legal existente, publicado com aLei n.º 5/93, de 1 de março), altura em que se passou a deixar cristalinamente expresso que tais poderes amplos de investigação continuariam a equivaler ao das autoridades judiciais,mas "que a estas não estejam constitucionalmente reservados".
Se até 2007, mesmo que com algum esforço, se admitia a hipótese de alguma discussão sobre a amplitude dos poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito, desde essa data não parece que os textos legais concedam grande margem de argumentação. E neste
campo específico do acesso a comunicações e a telecomunicações é a certeza que se sobrepõe. Não uma, mas duas certezas. Uma:a menos que voluntariamente entregue pelos seus titulares, as comissões não podem aceder ao conteúdo das comunicações privadas. Outra: nem com auxílio aos tribunais poderão as comissões aceder ao conteúdo das comunicações privadas não voluntariamente entregues pelos seus titulares.
É que desde a versão originária da Constituição – e sem que tal se tenha alterado em qualquer uma das várias revisões constitucionais – que se previu que "[é]proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência(…),salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal". A única alteração foi a de aumentar o sentido proibitivo, incluindo também os "demais meios de comunicação", além das telecomunicações (já previstas na redação originária). Ora, por muito que haja quem confunda o papel das comissões, particularmente quando o objeto destas se sobrepõe ao de investigações criminais em curso, o que nelas se faz – rectius, o que a lei prevê que nelas se deva fazer – não constitui, nem perto, nem longe, um processo criminal ou uma investigação criminal, por muitospseudojulgamentosque a partir delas se queiram fazer. E o regime dos inquéritos parlamentares já sofreu muitas alterações, mas se há algo que se mantém intacto desde 1977 é o seu propósito (pelo menos o legalmente definido):vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os atos do Governo e da Administração. O que está, é bem de ver, aléguasde vigiar as comunicações de cidadãos. Ou até mesmo do Presidente da República.
À tragédia de Camarate seguiram-se 10 (sim, 10…) comissões parlamentares de inquérito. No decurso dos trabalhos das primeiras que se formaram, além de uma certa resistência de colaboração de alguns tribunais com os pedidos das comissões – as mais das vezes relacionados com a salvaguarda do segredo de justiça da investigação –, entre 1993 e 1997 a AR viu-se na "contingência" de ter de suspender os trabalhos das comissões de inquérito que incidissem sobre investigações criminais em curso, "até ao trânsito em julgado da correspondente sentença judicial". No rescaldo das resistências do poder judicial, o poder legislativo (aqui como sucedâneo de poder político) ripostou: alterou-se o regime legal. E quando antes era obrigatória a suspensão dos trabalhos das comissões parlamentares de inquérito, passou-se a prever a mera possibilidade. E agora, foi a isto a que chegámos.
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