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Nuno Cunha Rolo Jurista
16.11.2025

O défice de transparência da transparência salarial

A transparência salarial visa combater a desigualdade remuneratória entre homens e mulheres.

“Trabalho igual merece salário igual. E, para garantir a igualdade salarial, é essencial haver transparência. As mulheres devem saber se estão a ser tratadas de forma justa pelos seus empregadores. E, quando isso não acontece, precisam de ter o poder de reagir e reivindicar o que merecem.”

- Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia.

A justiça salarial costuma estar ora em primeiro ora em segundo lugar no ranking das razões de motivação da atração e retenção de colaboradores, sobretudo dos mais jovens, concorrendo com o propósito e alinhamento de pertença e valores para com a organização.

Um gestor ou dirigente que esteja preocupado em atrair e reter trabalhadores no seu serviço ou organização não tem desculpa para ignorar aquilo que tem ou deve fazer. Se a estes fatores juntar a promoção do bem-estar no trabalho (incluindo equilíbrio entre vida pessoal e profissional, saúde mental e física, e ambiente seguro) e a criação de oportunidades de aprendizagem, formação, desenvolvimento de competências e progressão interna na carreira, faz o pleno e tem o essencial para ser um bom líder e promover a prosperidade da organização, e, deste modo, evitar, pelo menos, estar condenado ao fracasso e à exiguidade de recursos.

Claro que há muito trabalho a montante, desde logo desenhar uma visão e estratégia e plano de ação para todos saberem como lá chegar e “respirar e inspirar quotidianamente”, como dizia Drucker, o que se pretende atingir, pois, papéis e palavras são insuficientes, como (quase) todos os liderados ? ou seja, todos nós ? sabem.

Por falar em papéis e palavras, falemos então de transparência salarial, sem esquecer que a transparência salarial é, portanto, uma das dimensões substantivas da justiça salarial ou remuneratória.

Transparência salarial

A transparência salarial visa combater a desigualdade remuneratória entre homens e mulheres, considerada esta uma iniquidade e violação do direito humano fundamental da igualdade e não discriminação entre homens e mulheres.

No Direito não faltam proclamações deste combate e censuras destas práticas e “políticas” organizacionais, previstas no direito internacional (artigo 23.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 11.º da Convenção das ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, Convenção n.º 100 da OIT), europeu (artigos 2.º e 3.º do Tratado da União Europeia; artigos 8.º, 10.º e 157.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia; artigo 21.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e nacional interno, do constitucional ao regulamentar. 

Toda esta regulação mencionada fundamenta e visa combater o denominado “gender pay gap”, ou seja, a diferença salarial entre homens e mulheres.

Em 2023, dados apontam que a entre mulheres e homens (não ajustada) na UE situava-se nos 12,7 % (ou seja, as mulheres ganhavam em média 12,7 % a menos por hora do que os homens). Portugal situava-se nos 13,1%.

Estas desigualdades infringem os princípios “trabalho igual, retribuição igual” tendo em conta a sua “quantidade, natureza e qualidade” (artigo 59.º, n.º 1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa) e “trabalho igual ou de valor igual, retribuição igual” (artigo 31.º do Código do Trabalho), nos casos em que as funções exercidas sob a mesma entidade sejam similares ou equiparáveis na perspetiva do perfil e conteúdo funcional.

A nova Diretiva da Transparência Salarial (Diretiva 2023/970), integrada na Estratégia Europeia para a Igualdade de Género 2020, e a Lei n.º 60/2018, que aprova medidas de promoção da igualdade remuneratória entre mulheres e homens por trabalho igual ou de igual, são instrumentos estruturantes que visam garantir que a igualdade de remuneração por trabalho igual ou de valor igual deixe de ser apenas um princípio e passe a ser uma realidade concreta e devidamente fundamentada nas organizações públicas e privadas.

A primeira não está ainda em vigor, os Estados-membros têm o prazo de 7 de junho de 2026 para a transpor para o direito interno; a segunda, vigora desde 2019.

Ambas marcam um avanço histórico no combate à discriminação salarial injustificada entre homens e mulheres, mas divergem na sua ambição, alcance e obrigações para as entidades públicas e privadas, bem como nos mecanismos de atuação, gestão e fiscalização.

A Diretiva sobre Transparência Salarial

A nova Diretiva exige transparência proativa, reporte regular e critérios salariais objetivos para todas as entidades com 100 ou mais trabalhadores, com sanções robustas e mecanismos facilitadores de reclamação e inversão do ónus da prova, assim promovendo uma uniformização de práticas para igualdade efetiva.

Assim, será obrigatório, após a devida transposição interna da Diretiva, por exemplo: proteção dos denunciantes contra represálias (garantia de proteção eficaz a quem denuncia discriminações, incluindo testemunhas e representantes sindicais); aplicação de indemnizações e sanções (dever de prever indemnização integral e sanções efetivas, proporcionadas e dissuasoras, como coimas e potencial exclusão de concursos públicos); reversão do ónus da prova (nos casos de incumprimento da transparência salarial, incumbe ao empregador provar que não houve discriminação); divulgação pública de dados (estatísticas detalhadas, agregadas e desagregadas, devem ser publicadas e comunicadas à Comissão Europeia de forma sistemática).

As entidades sujeitas à Diretiva vão ter que, particularmente, realizar análises de equidade salarial, corrigir irregularidades; reavaliar os seus processos de recrutamento para cumprirem os requisitos relativos às bandas salariais (os candidatos a emprego têm direito a receber do potencial empregador informações sobre a remuneração inicial ou o seu intervalo) e à proibição de discriminação com base no histórico salarial; explicar como diferencia e define o desempenho ao estabelecer um salário base; dar acesso pelos trabalhadores aos critérios utilizados para definir os salários e os aumentos salariais; analisar as disparidades salariais e identificar as causas em que as disparidades salariais excedem os 5% previstos na Diretiva, justificar as anomalias e corrigir ou eliminar as inexplicáveis.

Será facultativo, dependendo portanto da vontade do legislador do Estado-membro, por exemplo: alargamento das obrigações de reporte para empresas com menos de 100 trabalhadores, ou permitir que estas comuniquem dados voluntariamente; ajuste de critérios para PME (possibilidade de modelos simplificados para micro e pequenas empresas e de isentar empregadores com menos de 50 trabalhadores de algumas regras de transparência na progressão salarial); delegação em parceiros sociais o desenvolvimento e implementação de ferramentas analíticas, formação e metodologias de avaliação salarial; sistema de ?fiscalização e acompanhamento da diretiva; possibilidade de debate de igualdade salarial nos processos de negociação coletiva, junto dos parceiros sociais.

A Diretiva representa um salto qualitativo relativamente à citada Lei n.º 60/2018, limitada ao reporte estatístico, planos de avaliação das diferenças remuneratórias e correção das diferenças injustificadas, com alguns mecanismos administrativos e fiscalizadores presentes, mas pouco desenvolvidos quanto à transparência imediata e acesso dos trabalhadores à informação, assim como em termos de abrangência, pois, depende da dimensão das entidades e queixas fundamentadas.

Todavia, ainda não se conhece o que irá constar da legislação interna sobre a transparência salarial e há muito mais e melhor a fazer do que criar grupos de peritos e elaborar excelentes estudos e projetos, porquanto vão ser as organizações públicas e privadas, e seus trabalhadores, os destinatários e atores principais, convém não esquecer.

Desafios da nova Diretiva

O Estado, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) assumem papéis de regulação, fiscalização e promoção da igualdade efetiva, requerendo uma ação articulada, transparente, aberta, competente, desburocratizadora e compreensiva, sob pena de uma legislação meramente simbólica, formalista e ineficaz.

Face à cultura organizacional portuguesa tendencialmente legalista, formalista, hierárquica e endógena, como bem estudou , há sérios riscos de que a transparência salarial se torne apenas uma formalidade, sem impacto real na redução das desigualdades e na vida dos trabalhadores, sobretudo mulheres.

Na definição da legislação que transporá esta diretiva, deve acautelar-se, especialmente, a formação dos atores, em especial dos dirigentes e inspetores de trabalho, em boa gestão, liderança e integridade; a dedicação de recursos financeiros e tecnológicos; a simplificação e desmaterialização de interações e processos, aproveitando instrumentos existentes, como o relatório único, para recolher e sistematizar, por exemplo, todos os dados de uma só vez, evitando burocracias inúteis e encargos desnecessários; instrumentos e mecanismos de controlo e correção das desigualdades remuneratórias; comunicação fácil e simples para com as entidades obrigadas, a fim de ; evitar riscos de retaliação para os trabalhadores que denunciarem desigualdades remuneratórias, sendo essencial garantir a proteção dos denunciantes e a confidencialidade dos dados.?

A administração pública deve acautelar estes riscos, garantindo que as medidas de transparência salarial sejam implementadas de forma eficaz, com apoio técnico especializado e formação adequada e inovadora, com integridade e mitigação de riscos inéticos e corruptivos.?

Atualmente existe um claro défice de transparência salarial na ação do estado e nas organizações em Portugal, como, também, refira-se, nos demais países europeus: défice de vontade (liderança), prioridade, preparação, estratégia, análise, informação, comunicação, formação (sobretudo, gestores/dirigentes), ofertas de emprego, recrutamento e seleção, contratação e progressão.

Este défice traduz-se em riscos regulatórios e gestionários, de perda de competitividade e produtividade, de desmotivação trabalhadores e saída de recursos e talentos, e de persistência de desigualdades salariais ocultas dentro das organizações, ou seja, de injustiças organizacionais e individuais.

Por outras palavras, a transparência salarial é um tema nacional nobre para uma cultura organizacional pobre, a qual carece, amiúde, de ser obrigada e ameaçada, por sanções e mecanismos de prova e judiciais, para cumprir e investir numa dimensão de boa liderança e gestão de pessoas e das organizações.

A transparência é uma condição fundamental e indispensável para uma liderança e gestão eficaz, bem como para a superação dos desempenhos e resultados organizacionais. Se a transparência não estiver profundamente incorporada e integrada na cultura da organização, no mundo atual, esta estará condenada a sobreviver ou a desaparecer, incluindo as entidades públicas.

Concluindo, a transparência salarial é um passo importante para combater a desigualdade remuneratória, mas só terá impacto real e positivo com uma visão ambiciosa, estratégica, integrada e simplificada para todo o mundo organizacional, de forma prioritária e ativa, com possibilidade de envolvimento de todos os atores e com medidas concretas, contínuas e corretivas de melhoria efetiva das condições de trabalho justas e jubilosas para todos, homens e mulheres.

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