Sábado – Pense por si

Miguel Costa Matos
Miguel Costa Matos Economista e deputado do PS
24 de setembro de 2024 às 07:00

O drama recorrente do alojamento estudantil

Os partidos deviam fazer já um "pacto de regime", preparando uma segunda geração do Plano Nacional para o Alojamento para o Ensino Superior. Aprendendo as lições do passado, precisamos de garantir já o financiamento para que as instituições de ensino superior e não só possam começar já a escolher locais, preparar projetos e lançar concursos.

Ana Hatherly escreveu que a escrita é um fragmento do espanto. Ao iniciar esta colaboração semanal com a Sábado, perguntei-me o propósito destas crónicas. Outros autores, jornalistas e comentadores, com maior distanciamento, farão análises mais interessantes e objetivas da atualidade. De qualquer modo, nunca foi a espuma dos dias que me encantou na política. Foram sempre as ideias transformadas em lutas e concretizadas no quotidiano das pessoas. O meu espanto, em 16 anos de vida política e quase 5 como parlamentar, sempre foi, como escreveu Manuel Alegre na versão portuguesa da "Internacional", com a transformação do mundo «por nossas mãos». É sobre ideias, lutas e conquistas que pretendo ocupar estas linhas e merecer a vossa leitura. 

Quando, aos 18 anos, parti para a Universidade de Warwick para estudar Filosofia, Política e Economia, eu e quase todos os "caloiros" ficávamos em residências universitárias. Estávamos todos à descoberta de novos amigos e do que realmente significava sermos responsáveis por nós próprios – desde a roupa à comida à organização do tempo e do dinheiro. Cedo percebi o quão diferente as coisas eram em Portugal. 

Portugal tinha, o ano passado, mais de 440 mil estudantes no ensino superior, dos quais 155 mil "caloiros" - inscritos pela primeira vez no primeiro ano. No total, 120 mil estudantes encontram-se deslocados das suas residências. Já o número de camas em residências, que em 2021 era de 15 mil, subiu para perto das 16 mil, com outras 6 mil em obra, num esforço que trará mais 10 mil novas camas até ao final de 2026. Ainda assim, não tenhamos dúvidas – mesmo depois destas camas todas construídas, continuará a haver uma enorme carência de alojamento estudantil em Portugal. 

Esta é uma realidade com que muitas famílias se estão, neste momento, a confrontar. Além das residências públicas, há um mercado de arrendamento formal de cerca de 35 mil quartos e um nascente setor de residências privadas que já soma quase 10 mil camas. Para além disto, há milhares de quartos arrendados informalmente, deixando estudantes vulneráveis a condições abusivas ou degradadas. Todos os anos o mesmo drama e, à medida que a propina vai diminuindo em valor, a habitação torna-se o principal custo de acesso e frequência ao ensino superior. 

Reconhecendo que não podemos esperar pela construção de novas residências, o Estado criou um complemento de alojamento para estudantes com bolsa de ação social. Tenho feito do seu aumento parte central do trabalho parlamentar da Juventude Socialista – tendo conseguido subir o seu valor de 30% do IAS em 2019 (131,64€) para entre 55 e 95% do IAS em 2024 (280,09€ a 483,30€). Hoje o valor deste complemento aproxima-se ou até supera o valor médio de um quarto, começando a existir o problema inverso de senhorios usarem o valor do complemento como uma renda mínima. 

Aplicável apenas a bolseiros, esta medida chegava a poucos milhares. Por isso o Partido Socialista fez do seu alargamento para a classe média uma das suas prioridades para a nova legislatura. Numa sociedade onde os cidadãos sentem que pagam impostos a mais para os serviços públicos que usam, só essa razão já seria importante. O seu impacto, porém, não era só de assegurar que também a classe média beneficia de iguais oportunidades de acesso ao ensino superior. Podemos e devemos antecipar a forma como a quase-universalização deste apoio contribuirá para pressionar os senhorios a formalizar os seus arrendamentos, por forma aos estudantes poderem beneficiar deste apoio e gerando assim maior segurança no mercado de arrendamento e, claro, receitas fiscais. 

Num gesto pouco sério, um dia antes da sua aprovação parlamentar, o Governo da Aliança Democrática adotou uma medida semelhante - meio apoio para um universo muito mais restrito de estudantes não-bolseiros. Mesmo depois da sua aprovação parlamentar, o Governo obteve um veto presidencial para que o seu modelo imperasse, mesmo que a 1 de janeiro sejam obrigados a pagar o apoio completo aprovado pela oposição. É mais um caso em que o tribalismo e a mesquinhez são postos acima do bem comum. 

Este subsídio à renda não deixa, porém, de ser um penso rápido. Precisamos de mais residências, permitindo ambicionar no médio prazo ter uma cama para grande parte dos estudantes deslocados e dos "caloiros". Para isso e sabendo que este tipo de obras duram, frequentemente, mais que uma legislatura, os partidos deviam fazer já um "pacto de regime", preparando uma segunda geração do Plano Nacional para o Alojamento para o Ensino Superior. Aprendendo as lições do passado, precisamos de garantir já o financiamento para que as instituições de ensino superior e não só possam começar já a escolher locais, preparar projetos e lançar concursos. Cada jovem só é estudante por um período limitado de tempo. Não há mesmo tempo a perder.

Mais crónicas do autor
29 de julho de 2025 às 07:12

Manifesto por um novo patriotismo

Estou farto que passem por patriotas aqueles que desfazem e desprezam tudo o que fizemos, tudo o que alcançámos e, sobretudo, tudo o que de nos livrámos – a miséria, a ignorância, o colonialismo.

22 de julho de 2025 às 07:16

Compram-se: histórias da carochinha

Já sabíamos que vivemos numa era de ciclos mediáticos muito curtos. Isso já era o caso com a televisão e passou a sê-lo mais ainda com as redes sociais. Todavia, estes meios deveriam permitir-nos confrontar os políticos com o que disseram ou propuseram no passado. Como se diz na gíria, "a internet não esquece".

15 de julho de 2025 às 07:31

Letras miúdas: como proteger quem investe e quem poupa

Muito trabalho ainda há a fazer. O desconhecimento dos portugueses em matéria de literacia financeira permite muitas tropelias. Por exemplo, permitiu que o Governo baixasse de forma "excessiva" a retenção na fonte, causando os reembolsos de IRS dos portugueses a desaparecer.

08 de julho de 2025 às 07:14

O INEM, sim, é uma emergência

Este não é um caso novo. Há precisamente um ano, Luís Meira demitia-se da presidência do INEM depois de sucessivas insistências para resolver o concurso de contratação dos novos helicópteros.

01 de julho de 2025 às 08:14

Os 5 truques da redução de IRS

Faça-se o que se fizer, num país onde se ganha mal, baixar o IRS parece sempre bem. Foi aliás essa a política do Partido Socialista nos 8 anos em que governou.

Mostrar mais crónicas

Férias no Alentejo

Trazemos-lhe um guia para aproveitar o melhor do Alentejo litoral. E ainda: um negócio fraudulento com vistos gold que envolveu 10 milhões de euros e uma entrevista ao filósofo José Gil.