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Marta Fonseca Ferreira Advogada
11.08.2025

O Relógio de Parede

"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.

No Tribunal de Família de Setúbal, o relógio da sala três parou às 14h17 no meio de uma audiência sobre o regime de visitas da pequena Sofia. Ninguém reparou imediatamente - o tique-taque constante tinha-se tornado fundo musical das discussões acaloradas entre o pai, técnico de informática, e a mãe, enfermeira do hospital da cidade.

"Há quanto tempo estamos aqui?" perguntou a juíza Dr.ª Isabel Moreira, olhando para o relógio parado. "Sinto que passaram horas."

"Duas horas e quinze minutos, Meritíssima," respondeu a oficial, consultando o seu relógio de pulso.

A Dr.ª Moreira observou os pais sentados em lados opostos da mesa. André tamborilava nervosamente com os dedos, consultando o telemóvel a cada cinco minutos. Carla revirava papéis no dossiê, organizando-os e reorganizando-os numa dança obsessiva de ansiedade.

"O problema não é o tempo que passam com a Sofia," disse a juíza, removendo os óculos. "É a qualidade desse tempo. Querem-me dizer quantas vezes olharam para o relógio desde que chegaram?"

André e Carla trocaram um olhar constrangido.

"O pai quer que a filha passe as férias de Natal com ele em casa dos avós paternos no Porto. A mãe opõe-se porque a Sofia tem atividades na escola e não quer quebrar a rotina," resumiu a juíza. "Mas ninguém me disse ainda o que quer a Sofia."

"Ela tem sete anos, Meritíssima," protestou Carla. "Não pode decidir sozinha."

"Não disse para decidir. Disse para ouvirmos."

A oficial trouxe um relógio portátil para substituir o avariado. O novo relógio tinha um tique-taque mais alto, quase intrusivo.

"Este barulho está a incomodar-me," comentou André.

"A mim também," concordou Carla, pela primeira vez em sintonia com o ex-marido.

"Interessante," observou a juíza. "Conseguem concordar sobre o relógio, mas não sobre onde a vossa filha deve passar o Natal."

Pediu uma pausa de quinze minutos. André e Carla saíram para corredores diferentes, mas acabaram ambos na máquina de café. Esperaram em silêncio, sem saber quem devia ir primeiro.

"Podes ir," disse finalmente André.

"Obrigada." Carla inseriu as moedas. "André... lembras-te do Natal em que a Sofia tinha quatro anos e insistiu que o Pai Natal tinha de vir a casa dos dois avós?"

"Lembro. Montámos uma encenação elaborada com presentes divididos."

"Ela foi a mais feliz de todas as crianças nesse dia."

"Porque teve o melhor dos dois mundos."

Voltaram à sala em silêncio, mas desta vez sentaram-se apenas com duas cadeiras de distância.

"Chegaram a alguma conclusão?" perguntou a juíza.

"Talvez possamos repensar isto," disse Carla. "A Sofia pode ir ao Porto com o pai na primeira semana das férias e ficar comigo na segunda. Assim tem o Natal com os dois lados da família."

"E se ela quiser ficar mais tempo num sítio do que noutro?" perguntou André.

"Perguntamos-lhe. E respeitamos a resposta."

A audiência terminou com um acordo que incluía uma cláusula inédita: tanto o pai como a mãe comprometem-se a perguntar à Sofia onde queria estar sempre que houvesse dúvidas, e a aceitar que uma criança de sete anos podia ter preferências válidas.

Três meses depois, a Dr.ª Moreira recebeu uma carta com fotografias. Era da Sofia, escrita com a ajuda dos pais. As fotos mostravam a menina no Porto com os avós paternos e em Setúbal com a avó materna. Em todas, ela sorria. A carta dizia simplesmente: "Obrigada por nos ensinarem a ouvir o tempo da Sofia."

O relógio da sala três foi finalmente reparado, mas a Dr.ª Moreira pediu para manter também o portátil. "Às vezes," explicou à oficial, "precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços."

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