Sábado – Pense por si

Mariana Sottomayor
Mariana Sottomayor
10 de dezembro de 2020 às 15:31

Contágio da COVID-19 na primeira idade e grupos de risco. Esta história não é para crianças

Qual a relevância do contágio entre crianças, adolescentes e jovens - a primeira idade, para os números da pandemia, e para uma das questões centrais que ela nos coloca, a proteção dos grupos de risco?

Qual a relevância do contágio entre crianças, adolescentes e jovens - a primeira idade, para os números da pandemia, e para uma das questões centrais que ela nos coloca, a proteção dos grupos de risco?

Há, desde logo, duas premissas essenciais para a correta avaliação da questão levantada: i) a primeira idade raramente desenvolve sintomas quando infetada pelo vírus da COVID-19; ii) os testes COVID-19 são realizados a "pessoas com suspeita de COVID-19", ou seja: "todas as pessoas que desenvolvam: quadro clínico sugestivo de infeção respiratória aguda (...); perda total ou parcial do olfato (...) (SIC do site da DGS).

Corolário imediato: NÃO EXISTEM, em Portugal, como na maioria dos países, quaisquer dados fiáveis sobre a prevalência ou disseminação da COVID-19 na primeira idade! Acrescentemos a isto o facto de as escolas terem estado fechadas durante toda a primeira vaga, com a exceção da abertura por pouco mais de um mês das escolas secundárias em maio-junho, e das creches e infantários por um período um pouco mais alargado. E esta abertura, além de curta, aconteceu num momento de valores mínimos de incidência da COVID-19 na população, fruto do confinamento geral prolongado e ainda em levantamento progressivo na altura. Não existiu portanto, qualquer laboratório válido para uma avaliação do impacto da primeira idade na circulação do vírus, num contexto de vida escolar normal.

Vencida com sucesso a primeira vaga, coincidente com as férias escolares, definiu-se o desígnio do ensino presencial como uma meta inalienável, porque essencial para o desenvolvimento equilibrado e saudável da primeira idade. No entanto, em vez de se defender esse desígnio com os pés na terra, com a plena consciência do risco, e com a implementação de operações de monitorização, nomeadamente envolvendo testagens cegas, o que aconteceu? Mesmo na ausência de quaisquer dados significativos, sucederam-se e sucedem-se declarações públicas de responsáveis do Governo e da DGS a garantir que pandemia e escola são quase como a água e o azeite, não se misturam: "o número de casos nas escolas é relativamente limitado", "as infeções são contraídas na comunidade e não na escola", "as escolas não são focos privilegiados de propagação", etc. Ora lembremos que as pessoas sem sintomas não são testadas, o que é o caso da maioria da primeira idade que seja infetada, pelo que os dados existentes continuam sem nos dizer rigorosamente nada, ou muito pouco, sobre o papel das escolas na circulação do vírus. As afirmações repetidas de segurança são por isso totalmente tendenciosas, e carecem de qualquer base sólida.

Uma análise dos dados da DGS publicados no Públicono dia 5 de novembro, mostram que de 14 de outubro a 4 de novembro, período em que a curva de crescimento da segunda vaga disparou, a faixa etária com maior aumento de casos foi precisamente a faixa etária dos 10 – 19 anos (108,5%), muito acima de todas as outras faixa etárias, que tiveram aumentos na casa dos 70%. De salientar que mesmo o aumento de casos dos 0 - 9 anos foi de 69,1%, sendo semelhante ao aumento observado nas faixas etárias dos adultos. Se cruzarmos estes resultados com as duas premissas enunciadas no início deste artigo, ou seja, que estes resultados dizem respeito apenas à primeira idade com sintomas, que constitui apenas uma pequena % dos que contraem o vírus, começa a desenhar-se um cenário que é exatamente o oposto daquele que nos tem sido vendido!

Começam também a aparecer artigos científicos sobre a COVID-19 em crianças que mostram que estas têm cargas virais semelhantes ou mais elevadas do que os adultos na sua nasofaringe, e durante períodos prolongados, prevendo-se que possam ser agentes de contágio importantes*.

Chegamos agora à questão da relação entre a primeira idade e os grupos de risco. Repare-se que numa situação em que se torna claro que o contágio na primeira idade é uma realidade incontornável, e adicionamos a essa realidade o elevadíssimo nº de contactos sem ou com baixa proteção que ocorrem numa escola, e o tempo prolongado de partilha de espaços fechados com um número muito elevado de colegas (com ou sem máscara, dependendo da idade), percebe-se que a co-habitação da primeira idade com membros de grupos de risco é um RISCO ELEVADÍSSIMO!

Deve o desígnio do ensino presencial sobrepor-se ao da defesa da vida humana? Porque é disso que se trata! Deve uma criança que tem uma irmã ou irmão, o pai ou a mãe que faz parte de um grupo de risco, ir à escola usufruir do convívio com colegas, da aprendizagem vibrante em sala de aula, e com isso colocar em risco de vida familiares diretos, ainda mais essenciais ao seu desenvolvimento? O que acontecerá a uma criança que traga o vírus para casa e com isso venha a ser responsável pela morte da mãe, do pai, de um/a irmã/o? Ou deve ir à escola sim, e devem viver em isolamento total uns dos outros dentro das suas casas? Qual é o mal menor? Eu não tenho dúvidas que é a criança ficar em casa, junto dos seus, e receber da Escola o apoio necessário à sua aprendizagem à distância.

Tal como se torna cada vez mais óbvio que controlar a curva da pandemia seria muito mais fácil com pelo menos parte da população escolar em casa, diminuindo drasticamente aquela que é uma população aberta à circulação do vírus, e permitindo medidas muito mais eficazes de controlo anti-contágio na população que ficasse na escola. Note-se que tal medida poderia ter um impacto significativo no achatamento da curva sem praticamente qualquer impacto negativo na economia.

Tudo isto deveria ser tomado em boa conta na discussão da petição "Poder de opção de escolha aos pais/encarregados de educação entre o ensino em casa online e o ensino presencial" que será discutida brevemente na Assembleia da República.

Mariana Sottomayor

Bióloga

* doi:10.1001/jamapediatrics.2020.3988

doi:10.1001/jamapediatrics.2020.3996

doi:10.3201/eid2610.201315

doi:10.15585/mmwr.mm6931e1

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