Sábado – Pense por si

Mariana Moniz
Mariana Moniz Psicóloga Clínica e Forense
04 de outubro de 2024 às 07:00

Fogo que arde e que se vê: Os incendiários em Portugal

Capa da Sábado Edição 16 a 22 de setembro
Leia a revista
Em versão ePaper
Ler agora
Edição de 16 a 22 de setembro

Existe um problema de incendiários em Portugal, cujas ações têm um impacto destrutivo no território natural do nosso país e, não poderemos esquecer, nas vidas de quem nele reside ou nas de quem tenta intervir sobre estes atos.

Se há coisa macabramente aceite pelos portugueses é que, todos os anos, incêndios irão deflagrar as nossas florestas, matos, pinhais e serras e que, inevitavelmente, muitos destes serão consequência da ação humana. De acordo com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a maior parte dos incêndios com causa apurada e conhecida em Portugal é causada, ou por negligência, ou intencionalmente. Como tal, existe um problema de incendiários em Portugal, cujas ações têm um impacto destrutivo no território natural do nosso país e, não poderemos esquecer, nas vidas de quem nele reside ou nas de quem tenta intervir sobre estes atos. Só em 2024 foram registadas cinco mortes de bombeiros, como consequência do combate aos incêndios florestais.

É natural que, ao ouvirmos que um incêndio foi iniciado, propositadamente, por alguém, sintamos impotência, frustração ou mesmo ira. À mão de um, sofrem todos, o que sucede ciclicamente, também em parte pela escassa prevenção nesta matéria. Estamos perante uma figurativa pescadinha de rabo na boca: apelamos ao cuidado e à prevenção de todos, os incêndios acontecem e voltamos a apelar. Na realidade, não haverá muito mais que a população geral possa fazer, certo? Se é um problema das condições físicas das áreas ardidas, terão de ser os proprietários ou Estado a intervir. Mas onde se encaixam, aqui, os incendiários? O que é que os motiva? Como poderemos intervir junto de quem provoca incêndios propositadamente? Como pode a justiça não deixar em liberdade pessoas já indiciadas por esse crime?

Deveremos salvaguardar que nem toda a gente que gosta de fogo é um incendiário e que nem todos os incendiários são pirómanos. Por exemplo, o interesse em fogo é quase universal em crianças; isto não significa que, no futuro, irão provocar incêndios. Por outro lado, a piromania é uma perturbação relativamente rara e nem todos os incendiários a detêm. Definimos piromania como uma perturbação mental caracterizada pela ignição deliberada de incêndios como consequência da tensão ou da excitação que tais atos trazem. Estes indivíduos podem sentir fascínio, interesse ou atração pelo fogo e pelas consequências do mesmo e, não raras vezes, podem procurar proximidade de contextos em que possam assistir a fogos (por exemplo, afiliando-se aos bombeiros locais). O ato de provocar incêndios e, consequentemente, de assistir ao impacto que estes têm, pode trazer, para estas pessoas, uma sensação de prazer, gratificação (por vezes, sexual) ou alívio. Assim, o fogo não é iniciado por motivos monetários, para ocultar outras atividades criminosas, para expressar vingança, ou por outros motivos.

Perante esta caracterização, poderá parecer que, em Portugal, a maior parte dos incêndios florestais são iniciados por estes sujeitos. Mas a realidade é que, como indicado acima, esta é uma perturbação bastante rara. Em contrapartida, a maior parte dos fogos postos constitui um ato de vingança, vandalismo ou terrorismo. Outras pessoas são motivadas por questões monetárias ou recorrem ao incêndio para encobrir outros atos criminosos cometidos no local. A excitação por detrás do ato e o desejo do reconhecimento e da fama que este traz são também potentes motivadores. Por fim, em alguns casos, estamos perante sujeitos que padecem de outras patologias psicológicas, como perturbações da personalidade ou perturbações psicóticas.

Este tipo de comportamento também não surge do zero: grande parte dos incendiários tem um historial de problemas familiares ou abuso na infância, abuso de substâncias (em especial do álcool), baixo rendimento escolar, deficitária capacidade interpessoal e intelectual e fraco controlo de impulsos. Alguns incendiários podem estar sob um intenso sofrimento emocional que não conseguem exprimir corretamente, faltando-lhes recursos emocionais para lidar com as situações stressantes. O incêndio surge, aqui, como uma forma de expressar raiva ou outras emoções negativas, podendo até trazer satisfação sexual.

Independentemente do motivo que levou estes sujeitos a cometer este tipo de crimes, a intervenção é fundamental. No caso da piromania, estamos perante uma perturbação crónica que, se não intervencionada, tende a intensificar-se, levando a uma grande probabilidade de reincidência criminal. Nos restantes casos, a necessidade de intervir sobre outras patologias e sobre o modo como enquadram os seus atos é imperativa à prevenção da reincidência.

A implementação de políticas e medidas sociais, no sentido de melhorar as condições físicas das nossas florestas, serras, matos e pinhais é, indubitavelmente, fulcral. São estas as condições que levam às dimensões colossais de alguns dos incêndios que assolam o nosso país todos os anos e que, sem dúvida, têm de ser alteradas. No entanto, também necessitamos de aprofundar os perfis de quem comete o incendiarismo, bem como intervir sobre os que iniciam estes incêndios propositadamente. Esse conhecimento será fulcral para a justiça, que, para além de punir, deve recrutar as entidades que possam monitorizar as condutas dos incendiários e garantir uma intervenção especializada e individualizada destes sujeitos, no âmbito da saúde mental. Notícias avançam que muitos dos incendiários agora identificados já tinham sido indiciados/condenados no passado. Como tal, só através desta intervenção será possível reduzir a probabilidade de reincidência, o que irá contribuir para a redução do número de fogos postos no nosso país, no futuro.         

Mais crónicas do autor
12 de setembro de 2025 às 09:07

Violência na criação da vida

A forma mais encoberta da violência obstétrica, isto é, a violência verbal, inclui comentários desrespeitosos, reprimendas desnecessárias, ironia, insultos, ameaças, culpabilização e humilhação da grávida.

11 de julho de 2025 às 07:33

O Homem forte: retorno à mentalidade ditatorial

Um olhar para o passado proporciona-nos, facilmente, figuras como Mussolini, Stalin, Hitler e Mao Zedong. Todos estes líderes, independentemente da sua inclinação política, viram ser construído um culto de personalidade em sua honra.

27 de junho de 2025 às 07:00

Doença dos filhos, invenção dos pais

A conhecida síndrome de Munchausen consiste no fabrico de doenças físicas e mentais, de modo a obter ganhos secundários, como o reconhecimento e atenção de terceiros ou cuidados médicos.

06 de junho de 2025 às 07:00

Os homens que não querem crescer

O nosso desenvolvimento individual ocorre faseada e progressivamente com o tempo. Não o devemos apressar, sob risco de perdermos experiências formativas e fundamentais para quem somos.

16 de maio de 2025 às 07:52

Sorte ou azar: Jovens e jogos de apostas

Muitos jogos gratuitos e amplamente populares, aliás, incluem agora jogos de apostas como função secundária das suas aplicações, uma espécie de mini-jogos que integram.

Mostrar mais crónicas
GLOBAL E LOCAL

A Ucrânia somos nós (I)

É tempo de clarificação e de explicarmos às opiniões públicas europeias que sem Segurança não continuaremos a ter Liberdade. A violação do espaço aéreo polaco por parte da Rússia, com 19 drones, foi o episódio mais grave da história da NATO. Temos de parar de desvalorizar a ameaça russa. Temos de parar de fazer, mesmo que sem intenção, de idiotas úteis do Kremlin. Se não formos capazes de ajudar a Ucrânia a resistir, a passada imperial russa entrará pelo espaço NATO e UE dentro