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João Carlos Barradas
22.11.2025

A América foi-se e ficámos sozinhos

Vladimir Putin alcançou o objectivo estratégico de dissociar a defesa europeia da intervenção militar norte-americana ambicionado pelos comunistas soviéticos.

A ruptura do compromisso de aliança militar entre Washington e os aliados da NATO está consumada onze anos depois de Moscovo anexar a Crimeia e lançar uma campanha militar separatista no Donbas.

Um dos pontos da proposta norte-americana para chegar a um cessar-fogo fala por si: «Terá lugar um diálogo entre a Rússia e a NATO, mediado pelos Estados Unidos, para resolver todas as questões de segurança e criar condições para uma desescalada, bem como garantir segurança global e aumentar oportunidades para cooperação e futuro desenvolvimento económico.»

A superpotência que impulsionou a criação, em 1949, da aliança defensiva ante a ameaça militar da União Soviética no continente europeu descarta responsabilidades e posiciona-se como intermediário na negociação entre os demais 31 parceiros da NATO e Moscovo.

Os termos ambíguos e pouco precisos da proposta irão sofrer alterações, bem como detalhes de compromissos de segurança ou acerca da linha de demarcação entre territórios ucranianos sob controlo russo e seu reconhecimento «de jure» e «de facto».

O essencial, no entanto, é isto: Washington pressiona Kiiv a aceitar perdas territoriais substanciais, a confinar-se a um estatuto de soberania limitada, e aceita a Rússia como parceiro económico e político de pleno direito.

A troco da totalidade do Donbas – os distritos de Lugansk e Donetsk – e da Crimeia, Moscovo poderá, eventualmente, renunciar a territórios que ocupa nos distritos de Kherson, Zaporijjia, Kharkiv e Dnipropetrovsk.

A Rússia garantiria, assim, o controlo do Leste da Ucrânia e a presença estratégica no Mar Negro, ainda que lhe escape o domínio do Sudoeste e o porto de Odesa.

Vladimir Putin alcançou o objectivo estratégico de dissociar a defesa europeia da intervenção militar norte-americana ambicionado pelos comunistas soviéticos.

Fora da Europa

A guerra em larga escala desencadeada por Putin em Fevereiro de 2022 desfez, efectivamente, o compromisso de defesa mútua que Donald Trump, já em 2018, pusera em causa ao ameaçar abandonar a NATO.

O Pentágono tem, de resto, em análise a possibilidade de renunciar à prerrogativa de nomear o Comandante Supremo Aliado na Europa, uma incumbência que, na divisão política e militar de cargos entre norte-americanos, canadianos e europeus, incumbe desde Dwight D. Eisenhower aos mais altos graduados generais norte-americanos.

Note-se, de passagem, que, entre nós, a relevância do empenho norte-americano neste cargo escapa por completo a alguns candidatos presidenciais, como é o caso de Cotrim de Figueiredo, ignorando-se na campanha a questão da ruptura no sistema de alianças militares.

A impossibilidade de Volodomir Zelenskii – a braços com um irremediável escândalo de corrupção institucional que acarretará a demissão do seu chefe de gabinete Andrii Iermak – e o Parlamento de Kiiv ratificarem um acordo nestes termos é óbvia.

É outro trunfo para Putin a quem importa a mobilização para a guerra – apesar de custos crescentes prestes a arrastar a Rússia para uma recessão económica – como forma de garantir a coesão e subordinação das elites políticas e económicas.

Focos diminutos de contestação na Rússia estão de momento sob controlo graças a benefícios materiais imediatos, com grandes variações regionais e sociais, trazidos pela economia de guerra.

É problemática, todavia, a capacidade de o estado russo manter o actual nível de subsídios e investimentos quando a inflação ronda os 8%, as despesas de segurança e defesa orçam em 38% do orçamento, apesar da previsão de um défice para 2026 de apenas 1,6% do PIB.

Uma situação de tensão permanente na linha da frente com a Ucrânia e o aumento da pressão intimidatória contra os aliados europeus de Kiiv é, no entanto, neste contexto, um quadro perfeitamente aceitável para Putin.

Um acordo com Trump que alivie sanções económicas e financeiras, a manutenção de entendimentos entre Moscovo e Pequim, é o fito imediato de Putin.

A subserviência e a determinação 

Esta lógica política assenta no pressuposto dos aliados europeus da NATO e o Canadá serem incapazes de sustentarem militar e financeiramente o esforço de guerra da Ucrânia, dependente de empréstimos e dádivas para cobrir um défice orçamental superior a 20% do PIB.

Sangria demográfica, incomportáveis níveis de fuga ao serviço militar e deserção, carências de equipamento e de informação imediatamente accionável – em especial para ataques a longa distância – aumentam o risco de Kiiv não conseguir evitar rupturas nas linhas de frente. Do lado russo regista-se um elevadíssimo nível de baixas possivelmente cerca de um milhão de mortos, feridos e desaparecidos.

Será, possivelmente, o dobro das perdas ucranianas, mas a capacidade de mobilização de Kiiv é muito mais reduzida.

Para os aliados europeus da NATO chegou a hora da verdade e estão sozinhos.

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