Sábado – Pense por si

Pedro Proença
Pedro Proença Advogado
21 de novembro de 2025 às 07:00

“Operação Obélix”: A faude engorda quando o Estado emagrece

Os sistemas públicos precisam de alarmes, alertas e indicadores automáticos. No caso de Obélix, era impossível não notar que uma única médica prescrevia milhares de embalagens em volume muito superior ao padrão clínico nacional.

Nos últimos meses, Portugal tem assistido a uma sucessão de operações policiais com nomes quase caricaturais - Obélix, Gambérria, Ressonância, e outras que entretanto já se perderam no ruído das notícias. O humor involuntário dos títulos contrasta violentamente com a gravidade do que revelam: um Estado vulnerável, sistemas públicos permeáveis e profissionais que, em vez de garantir o funcionamento das instituições, aprenderam a explorá-las como fonte de rendimento paralelo.

A Operação Obélix expôs de forma brutal uma rede de prescrição fraudulenta de medicamentos como Ozempic ou Trulicity, concebida para contornar regras clínicas, enganar o Serviço Nacional de Saúde e gerar benefícios privados a partir da comparticipação pública. Segundo a investigação, a médica em causa terá prescrito mais de 65 mil embalagens, muitas a utentes que não eram diabéticos, gerando um prejuízo potencial superior a três milhões de euros. A dimensão do esquema, a complexidade e a extensão territorial mostram que não estamos perante um ato isolado de má prática médica, mas perante uma falha sistémica de controlo dentro do SNS.

A Operação Gambérria revelou outra face da mesma vulnerabilidade: funcionários de unidades de saúde que inscreviam ilegalmente milhares de imigrantes no SNS, atribuindo números de utente sem requisitos legais e facilitando a entrada em esquemas mais amplos de imigração irregular. Não se trata apenas de corrupção individual; trata-se de como atos individuais conseguem manipular, sem grande dificuldade, sistemas que deveriam estar blindados contra este tipo de fraude. A atribuição de um número de utente - um ato administrativo básico, que deveria exigir rigor e verificação documental - tornou-se num ponto de fuga do sistema, um acesso lateral à legalização, uma fragilidade estrutural que só foi descoberta porque a dimensão da fraude se tornou impossível de ignorar.

No meio destas operações mediáticas, surge ainda o caso perturbador de médicos que recebem valores que chegam aos 11 mil euros por cada cirurgia indevida, muitas vezes sem critério clínico, manipulando listas de espera, inflacionando atos cirúrgicos e, em alguns casos, operando doentes que não precisavam de ser operados. Aqui, o problema atinge o seu ponto mais sensível: a saúde transformada num mercado paralelo onde o lucro se sobrepõe ao diagnóstico, e onde a ausência de mecanismos cruzados de auditoria permite que a atividade cirúrgica seja tratada como um negócio privado alimentado por fundos públicos.

O traço comum a estes casos é evidente: o Estado não tem mecanismos de controlo eficazes, não cruza informação, não audita com regularidade e não monitoriza padrões anómalos de atuação. Não é falta de leis. É falta de sistemas. Falta de cultura organizacional. Falta de supervisão. Falta de responsabilização.

O que fazer, então?

Primeiro, é preciso reforçar a arquitetura digital do Estado.

Os sistemas públicos precisam de alarmes, alertas e indicadores automáticos. No caso de Obélix, era impossível não notar que uma única médica prescrevia milhares de embalagens em volume muito superior ao padrão clínico nacional. Os sistemas informáticos devem identificar automaticamente prescrições que se desviam da média, tal como já acontece no setor financeiro com operações suspeitas. Não é ciência espacial; é apenas gestão moderna de risco.

Segundo, é necessário reforçar a segregação de funções.

Na Gambérria, o mesmo funcionário que introduz dados não pode ser o único a validar a atribuição de números de utente. A validação dupla - um conceito básico em auditoria - teria travado grande parte da fraude.

Terceiro, o Estado precisa de auditorias externas e independentes, regulares, intrusivas e transparentes.

Auditorias internas são indispensáveis, mas são insuficientes quando o risco é de captura por dentro. As ARS, hospitais e centros de saúde devem ser avaliados por equipas rotativas, sem vínculos locais e com acesso pleno aos dados.

Quarto, urge criar uma cultura de proteção ao denunciante.

Muitos profissionais sabem o que se passa, veem padrões desviantes e percebem irregularidades, mas receiam denunciar por medo de represálias. Um sistema de whistleblowing eficaz teria evitado milhões de euros de perdas.

Finalmente, é preciso reforçar a responsabilidade disciplinar.

A Ordem dos Médicos e as demais ordens profissionais continuam, demasiadas vezes, a atuar como estruturas de proteção corporativa. Quando um médico prescreve de forma manifestamente contrária às leges artis, ou quando alguém opera doentes que não precisam de ser operados, a sanção deve ser célere, exemplar e proporcional ao risco criado para o utente e para o erário público.

O país olha para estas operações com espanto e indignação. Eu olho com preocupação — não pelo nome Obélix ou Gambérria, mas porque, à luz destes casos, o que parece verdadeiramente fantasioso é imaginar que o Estado, tal como está, consegue controlar eficazmente quem o serve e quem dele depende

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