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Sabia que a saúde das suas gengivas pode afetar o seu bebé?

Lucília Galha 25 de maio de 2025 às 10:00

Há uma relação entre as alterações hormonais da mulher e a sua saúde oral, que é pouco conhecida e pode estar na origem de várias doenças - e até partos prematuros. A médica dentista Ana Mexia explica por que é que os dentes são mais do que um problema estético.

Manter a higiene da boca é mais do que uma questão estética. Na verdade, hoje sabe-se que os problemas dentários estão implicados numa série de doenças. E, no caso das mulheres, isso ainda é mais evidente devido às oscilações hormonais - que também têm influência na saúde oral. É fácil de perceber esta associação. "Tem a ver com a libertação de mediadores inflamatórios na corrente sanguínea ou a disseminação de bactérias orais pela mesma via, que alcançam outros órgãos ou sistemas afetando o seu equilíbrio", explica àSÁBADOa médica dentista Ana Mexia. 

Getty Images

A 28 de maio assinala-se o Dia Mundial da Saúde Feminina e, numa entrevista à revista SÁBADO, a especialista fala do impacto que a menarca, a gravidez e a menopausa têm na saúde oral da mulher e explica também a importância de ir ao dentista regularmente - e não esperar por ter uma dor ou um problema.   

O que explica esta relação entre saúde oral e saúde hormonal?
A relação entre saúde oral e saúde hormonal, especialmente no caso das mulheres, é complexa e multifacetada. As flutuações hormonais ao longo da vida, na puberdade, durante o ciclo menstrual, gravidez e na menopausa podem afetar as gengivas, a produção de saliva e até a resposta do sistema imunitário. Hormonas como o estrogénio e a progesterona têm um impacto direto na saúde oral, porque afetam a vascularização dos tecidos, a resposta inflamatória e a composição da microbiota da cavidade oral.

Por exemplo, a própria utilização de anticoncecionais orais com elevadas doses de estrogénio/progesterona pode agravar inflamações gengivais existentes, nos primeiros meses de uso. No entanto, atualmente, este efeito é menos comum devido às fórmulas mais avançadas do medicamento. Temos de perceber que a cavidade oral contém a segunda população microbiana mais complexa do corpo humano, com mais de 700 espécies de bactérias, e este microbioma varia de forma significativa ao longo de diferentes fases da vida.

Como é que se descobriu esta ligação?
Começou a ser observada clinicamente no início do século XX, quando médicos e dentistas perceberam que muitas mulheres apresentavam gengivas mais inflamadas durante a gravidez, mesmo com boa higiene oral. No entanto, só a partir das décadas de 60 e 70, com o avanço da endocrinologia e da microbiologia oral, é que esta relação começou a ser estudada de forma mais sistemática. Podemos verificar que, em 1973, já existiam publicações em algumas das revistas científicas mais importantes da área. Um exemplo é o Change in the gengiva during therapy with contraceptive hormones, publicado em 1973, ou Female sex hormonal factors in periodontal disease, publicado em 1976. Estudos mais recentes, sobretudo nas últimas duas décadas, ajudaram a consolidar esta ligação, permitindo-nos ver a boca como um espelho do equilíbrio hormonal da mulher.

É uma relação bidirecional, ou seja, se tivermos boa saúde oral teremos menos desregulação hormonal e, inversamente, as desregulações hormonais podem ter impacto na saúde da boca? 
Sim. Um exemplo interessante é a forma como doenças periodontais mal controladas podem agravar doenças, como a diabetes. A verdade é que estas inflamações gengivais podem agravar a resistência à insulina, ou afetar o curso normal de uma gravidez, chegando mesmo a ter impacto na saúde do futuro bebé.

Também por isso é fundamental que a medicina dentária esteja alinhada com uma visão integrada da saúde, ajustando os tratamentos de forma personalizada e melhorando desta forma o bem-estar geral dos nossos pacientes.

Isto também se verifica nos homens?
Sim, por exemplo, quando pensamos na relação entre doenças orais e a diabetes mellitus, ela manifesta-se tanto no homem como na mulher. Aliás, esta doença é altamente prevalente nos homens e muitas vezes está associada a doença periodontal crónica, xerostomia (falta de saliva) e complicações na cicatrização. Também a testosterona, principal hormona sexual masculina, influencia a densidade óssea e a manutenção de tecidos periodontais.

Resumindo, a relação entre sistema endócrino e saúde oral existe em ambos os sexos, mas é muito mais evidente nas mulheres, e há razões biológicas para isso. A oscilações hormonais são mais frequentes ao longo da vida da mulher e embora nos homens também existam hormonas sexuais que influenciam a saúde oral, estas variações são mais estáveis ao longo do tempo. Isto faz com que no homem, os efeitos hormonais sobre a boca sejam menos marcados e, muitas vezes, indiretos.

Quando se refere que a doença periodontal pode estar ligada a partos prematuros, quer dizer que há uma relação direta? Como é que uma coisa desencadeia a outra?
Há vários artigos científicos que evidenciam uma relação significativa entre a doença periodontal e partos prematuros, embora nem sempre seja direta ou exclusiva. Verificou-se que grávidas com doença periodontal (doença do osso e gengivas ao redor dos dentes, causada pela presença de bactérias) têm maior risco de ter um parto prematuro e/ou de nascimento de recém-nascidos de baixo peso. Esta associação tem sido amplamente investigada.

O mecanismo que explica este fenómeno está relacionado, em primeiro lugar, com o aumento de produção de bactérias presentes neste tipo de doença, devido às alterações hormonais da gravidez. Quando a infeção não é controlada, as bactérias podem entrar na corrente sanguínea e deslocar-se até ao útero da mulher, atingindo a placenta e o líquido amniótico. A resposta do organismo a esta infeção estimula a produção de mediadores inflamatórios, que estão implicadas no desencadeamento do trabalho de parto através de contrações uterinas prematuras.

São necessários ainda mais estudos sobre esta matéria, mas o que sabemos hoje, já nos obriga a estar atentos a estes problemas e justifica a prevenção do tratamento da doença periodontal, principalmente em mulheres que planeiam engravidar.

Sabendo isto de antemão, não deveria ser dada mais atenção à saúde oral da grávida? 
Sem dúvida, por exemplo, na minha clínica, temos duas médicas dentistas com agenda aberta para a consulta da mulher grávida, no qual são tiradas todas as dúvidas e onde são diagnosticadas doenças da cavidade oral que podem influenciar o decorrer normal de uma gravidez. Ainda existe o mito de que uma mulher grávida ou a amamentar não pode levar anestesia para fazer um tratamento dentário – não é verdade.

Verificou-se que grávidas com doença periodontal têm maior risco de ter um parto prematuro ou de ter recém-nascidos de baixo peso.

Ana Mexia, médica dentista

Aftas recorrentes podem ser um indicativo de desregulação hormonal?
Embora muitas vezes não tenham causa conhecida, as alterações hormonais podem ser uma justificação possível para o seu aparecimento. As alterações hormonais da mulher, sejam no ciclo menstrual, na gravidez ou até na menopausa, influenciam diretamente o sistema imunitário, a capacidade de resposta inflamatória e até a capacidade de reparação dos tecidos.

Assim, se temos uma mucosa oral mais sensível, a resistência por exemplo a micro-traumas pode diminuir desencadeando o aparecimento de uma afta. A própria capacidade de cicatrização também pode estar alterada, o que faz com que pequenos estímulos, como alimentos ácidos ou leves queimaduras, possam desencadear o aparecimento de pequenas úlceras ou aftas.

O que acontece na microbiota oral na menopausa?
Na menopausa há uma queda significativa nos níveis de estrogénio, que têm um impacto significativo na microbiota oral. A diminuição desta hormona pode reduzir a produção de saliva resultando em boca seca, tornando-se mais suscetível ao crescimento bacteriano e fúngico, o que pode desencadear o aparecimento de cáries ou infeções fúngicas, como a candidíase oral.

A modificação da flora bacteriana pode também favorecer o crescimento de bactérias associadas a outras doenças orais, como a periodontite. Além disso, verifica-se uma alteração nos tecidos orais, que podem manifestar-se sobre a forma de dor e hemorragias mais frequentes.

Para contrariar este risco e sintomas é importante manter uma higiene oral adequada, se necessário recorrer a produtos que estimulam a produção de saliva e adotar cuidados específicos com a alimentação – evitando alimentos que secam mais a boca, como o álcool. Em alguns casos optar pela terapia hormonal substitutiva. A visita regular ao médico dentista também está indicada para prevenir estes sintomas, ou reduzir o seu impacto.

Na menarca, a saúde oral das meninas também é mais vulnerável?
Sim, também nesta fase verificam-se alterações dos tecidos orais e das mucosas. Porque há um aumento dos níveis de estrogénio e progesterona que pode afetar diretamente os tecidos gengivais. Muitas vezes, as gengivas ficam mais inflamadas e com maior tendência para sangrar mesmo com uma correta higiene oral. Como a resposta inflamatória está alterada, por vezes, há gengivites (inflamação das gengivas) associadas à puberdade.

Hoje também se sabe que os problemas dentários podem estar implicados numa série de doenças e complicações.
Verdade, estima-se que mais de 100 doenças e 500 medicações possam apresentar manifestações orais. As doenças podem influenciar diretamente a saúde oral, ou indiretamente, através dos efeitos secundários da medicação. Por outro lado, alterações na cavidade oral como gengivite e periodontite, ou a presença de cáries dentárias, podem ter impacto direto na saúde.

Os mecanismos que associam os problemas dentários a outras doenças são semelhantes aos implicados na saúde hormonal feminina, ou seja, implicam a libertação de mediadores inflamatórios na corrente sanguínea ou a disseminação de bactérias orais pela mesma via, que alcançam outros órgãos ou sistemas afetando o seu equilíbrio.

Por exemplo, sabe-se hoje que quem sofre de doença periodontal tem maior risco de ter doenças cardiovasculares. Estudos mais recentes também apontam para uma relação importante entre doença periodontal crónica e o desenvolvimento ou agravamento da doença de Alzheimer. O principal mecanismo em estudo envolve a neuro-inflamação.

Mesmo com este conhecimento, esta não é uma área em que se atue muito na prevenção. Que mensagem deve ser transmitida?
Seria de crucial importância que outros profissionais de saúde, além dos médicos dentistas, estivessem atentos e despertos para estas relações já estudadas entre saúde geral e saúde oral. A medicina dentária em Portugal tem sido tratada como o parente pobre da medicina e precisamos de uma mudança de mentalidade, onde a consulta de rotina no médico dentista seja entendida como uma estratégia de prevenção global e não apenas como pontual no tratamento da dor ou de uma demanda estética.

Quais são os principais mitos que persistem relativamente à saúde oral?
Precisávamos de mais um artigo inteiro para os referirmos a todos. Mas, por exemplo, a ideia de que só tenho de tratar um dente quando ele dói; que durante a gravidez os dentes ficam mais fracos porque o bebé rouba o cálcio da mãe; que escovar os dentes com força é mais eficaz na eliminação da placa bacteriana; que sangrar das gengivas é normal ou que grávidas não podem levar anestesia no dentista. Estas ideias preconcebidas não passam disso mesmo – mitos.

Quando alguém me diz que não sabia que sangrar das gengivas é motivo para ir ao dentista, costumo perguntar: "Se sangrasse de um olho, não marcava imediatamente consulta no oftalmologista?" Então, porque é que sangrar das gengivas é encarado como uma coisa normal?

Estima-se que mais de 100 doenças e 500 medicações possam apresentar manifestações orais.

Ana Mexia, médica dentista

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