Clara Pinto Correia (1960-2025): “Era para ter ficado numa cadeira de rodas. O médico disse-me que foi um milagre”
Intelectual de proa, bióloga e romancista, casou-se três vezes, uma delas em Las Vegas com botas de pele de cobra. Adotou dois miúdos, teve uma depressão, declarou insolvência e deu explicações para pagar as contas. Sobreviveu a um acidente, nunca largou a escrita e mudou-se para Estremoz, a terra do seu primeiro amor.
A porta de madeira range, num segundo andar sem elevador. Lá dentro, subimos mais 17 degraus, em dois lanços, até chegarmos ao refúgio de Clara Pinto Correia. Não está sozinha no T5 do século XVIII, arrendado no centro histórico de Estremoz. O galo da Malásia (Jeremias) anda pelo terraço, enquanto o rafeiro alentejano de 43 kgs (Sebastião) ladra pela casa.
A bióloga, académica, jornalista, escritora que acumulou sucessos, também conheceu fracassos (vários e mediáticos). Prestes a fazer 65 anos no final de janeiro, e com o 59.º livro (Antares) publicado este verão, a catedrática jubilada revela à SÁBADO o que a levou a mudar de vida.
Começou a escrever o seu mais recente livro, Antares, há dez anos. Porque é que demorou tanto tempo?
Para ser bonito, transmitir esperança e fazer as pessoas felizes tinha de ser bom. É um romance muito intelectual, simultaneamente muito erótico da primeira à última página. Um vento especial diferente de todos os outros que entram pela janela vai direito à cama da mulher que acaba de fazer 70 anos. Quando bate no lençol transforma-se num homem, que fala uma linguagem estranha mas tem uma voz lindíssima. Embora ela não perceba nada do que se está a passar, alinha incondicionalmente. Nunca tinha escrito uma única cena de cama, nem sequer descrito um beijo. Quando escrevi a passagem do espelho [da protagonista septuagenária em êxtase] estava internada no hospital de Coimbra, no serviço de pneumologia, para fazer o tratamento à necrose pulmonar [tecido morto, que compromete a capacidade respiratória]. Foram porreiros ao ponto de me darem um quarto só para mim, para estar sozinha e trabalhar à vontade.
Quando é que o romance ganhou forma?
O livro começou a crescer quando vim para Estremoz, há quatro anos. Descobri a editora Exclamação, cujo diretor é biólogo como eu. Não suporto as multinacionais, há que apoiar as pequenas editoras.
Está prestes a fazer 65 anos, a 30 de janeiro. Tem planos para o aniversário?
Vou jantar em casa de um amigo, na zona. Durante o dia, comprarei uns cremes e umas prendinhas para mim. Gosto que me deem os parabéns, digo sempre que faço mais [idade] para as pessoas dizerem que estou ótima. [Risos]. Tenho andado a debater-me com a idade que direi: este ano tenho dito 67; para o ano acho que dizer 68 não tem graça, 69 é um número obsceno e 70 é demais.
Porque é que escolheu Estremoz para viver?
O meu primeiro amor era de Estremoz, de uma aldeia próxima chamada Arcos. O meu último amor era parecido com o Bandido [personagem de Antares] e também de Estremoz. Sempre gostei da cidade, acho-a luminosa e bonita. Quando começou o confinamento [2020], estive 15 dias internada em São José por causa de uma pneumonia. Voltei para casa e estive imenso tempo de cama. Lembro-me de fazer 60 anos na cama, fiquei gordíssima porque estive quase um mês a tomar cortisona. Foi quando comecei a pensar: "Se continuar em Lisboa, morro." Decidi vir para cá.
Como é o seu dia a dia?
Os meus problemas de saúde condicionaram as ideias que tinha sobre coisas que poderia fazer. Acordo às 6h, por causa do Sebastião [cão rafeiro alentejano, de 2 anos]. Costumo passar horas intermináveis no escritório, a escrever. Doei a minha biblioteca de divulgação científica, 100 e tal livros, à biblioteca municipal de Estremoz. Há um coro muito giro de mulheres de mais de 50 anos, As Velhas Gaiteiras, onde me inscrevi para cantar. Mas uma pessoa que está permanentemente a ficar doente não pode fazer parte do coro, não pode faltar aos ensaios. Quando estava nos Estados Unidos, nos últimos anos, cantava num coro de gospel. Sempre tive duas grandes fantasias na vida: uma era cantar num coro de gospel e outra era ser namorada do Mick Jagger. Não cheguei a conhecê-lo.
Será a única mulher a viver sozinha em Estremoz?
Sou capaz de ser. No primeiro ano em que passei cá o verão, estava ali na cama a ler, com a janela aberta. Eram 2h. Ouvi dois homens a conversarem por baixo da minha janela, percebi que a conversa era sobre mim e prestei atenção. Estava um deles a perguntar: "Mas ela é puta?" E o outro a dizer: "Não. É uma artista." Vem uma mulher sozinha, da minha idade, viver para aqui e os homens interrogam-se.
Apesar de ter feito parte do sistema, sentiu necessidade de sair dele?
Só saí do sistema quando fui obrigada, depois daquilo que as pessoas transformaram no grande escândalo das fotografias.
É um romance muito intelectual e erótico. Nunca tinha escrito uma cena de cama"
Anos antes desse escândalo, viveu outro, em 2003, por causa do plágio na Visão, agora em risco de fechar. Tem acompanhado a situação da revista?
Sim, eu sei. Nessa história, eu estava nos Estados Unidos. Na altura não havia Google. As pessoas começaram a ligar-me para casa, a dizer que eu tinha plagiado não sei o quê. Nem sequer sabia do que estavam a falar. No segundo dia, telefonou a minha mãe a dizer: "Não respondas a nada do que as pessoas te perguntarem. Estão a aproveitar tudo o que dizes para fazerem de ti parva." E eu calei-me. Telefonou-me um amigo a dizer que [no noticiário] estavam a fazer uma mesa-redonda sobre o plágio e por baixo passavam em letras pequenas "explodiu o Space Shuttle". Percebi o que tinha acontecido. Deixei o texto aberto sobre Vaclav Havel [presidente da República Checa de 1993 a 2003], que tinha traduzido, guardado e assinado com o nome da pessoa [colunista David Remnick], para citar. Mas eram 3h da manhã e eu estava completamente estafada. Depois deixei cair. Foi colado às outras partes que escrevi. Quando cheguei a Lisboa, três semanas depois, já não ia dizer nada.
Que efeitos teve a exposição Sexpressions (2010), com expressões suas em estado de clímax?
Fiquei sem emprego, sem qualquer espécie de trabalho. Primeiro que começasse a receber o subsídio de desemprego foram quase dois anos. Nas filas da Segurança Social olhavam para mim de esguelha. A minha senhoria da casa no Penedo [perto de Colares, Sintra] pôs-me uma ordem de despejo. Há 30 anos que lhe arrendava a casa e dava-me lindamente com ela.
As pessoas tinham raiva, inveja, porque eu era um bocado demais. Nada me atrapalhava"
A exposição era bilingue, tinha textos seus e fotos tiradas pelo seu marido, o fotógrafo Pedro Palma (que morreu em 2017). Como foram parar à Internet?
Ele já era meu ex-marido, estava lixado comigo. Eram para ser só dez fotos, ele pôs todas as que me tinha tirado, umas 20 e tal, sem o texto, sem explicar o que é que aquilo era. Quando o conheci tinha 48 anos, já tinha tido dois maridos e tinha dois filhos. Tinha passado a vida entre Portugal e os Estados Unidos, publicado vários romances e livros académicos. Deixei-me levar por esse pseudo príncipe encantado, porque estava extraordinariamente carente.
Após o impacto da exposição, sofreu um acidente de carro. O que aconteceu?
Ainda vivia no Penedo e ia naquela estrada cheia de curvas, entre a Malveira da Serra e o Guincho, a caminho da Lusófona para fazer os acordos finais [da saída da faculdade para onde entrou em 1995, foi vice-reitora até 2003 e dirigiu a licenciatura em Biologia e o mestrado em Biologia do Desenvolvimento]. De repente, desmaiei ao volante. Estava num grande estado de tensão. O carro caiu, fez uma cambalhota, bateu num poste de EDP. Lembro-me de acordar e de ver a cara tensa de um bombeiro a dizer-me: "Não se mexa." Depois levaram-me para o hospital de Sant’Ana, na Parede. Operaram-me [na coluna], tenho isto cheio de parafusos. Era para ter ficado numa cadeira de rodas. O médico que me operou, e era ateu, disse-me: "O que aconteceu só pode ser um milagre. Reze e agradeça a Deus."
Sem trabalho e à espera de subsídio de desemprego, como sobreviveu?
Dava explicações de Biologia e Português. Preparei alunos do 12.º ano para os exames num centro de explicações em Moscavide. Vivia em Xabregas com os meus filhos. Depois tive uma curta carreira como modelo. Passei muitas peças da Maria João du Valle, grande amiga, estilista. Ela dizia que se inspirava muitas vezes em mim para trabalhar, mas foi para Moçambique e perdi-lhe o rasto.
Como enfrentou os anos negros da troika (2011-2014)?
Quando Passos Coelho disse aos portugueses para serem criativos e emigrarem, os meus filhos foram para Londres e eu fui para os Estados Unidos. Tinha uma proposta giríssima de Scott Gilbert, pai da Biologia do Desenvolvimento, de quem sou amiga. Ele queria escrever um livro sobre as técnicas de reprodução assistida no humano, sendo que na maior parte dos casos não funcionam. Queria que essa parte fosse feita por mim, porque já me tinha ouvido em várias conferências. Esse livro [Fear, Wonder, And Science - In The New Age Of Reproductive Biotechnology, editado em 2017 pela Columbia University Press, e traduzido por medo, admiração e ciência - na nova era da biotecnologia reprodutiva] foi um grande sucesso nos Estados Unidos. Foi traduzido para japonês, mas Portugal varreu-o para debaixo do tapete.
Porque é que o livro passou despercebido em Portugal?
Acho que as pessoas tinham raiva, inveja, vontade que me caísse um raio em cima. Porque eu era um bocado demais, escrevia livros, era jornalista, depois ia para a América. Nada me atrapalhava.
Nessa altura, fez uma série de palestras sobre o livro, com Scott Gilbert, em universidades japonesas. Como correram?
Estavam pessoas não só do Japão, mas também de Hong Kong e Taiwan: chefes de departamento, catedráticos. Trataram-nos como realeza. Cheguei lá e nem queria acreditar que nos tinham arranjado um hotel no centro de Tóquio, tinha quartos grandes e uma vista linda sobre a cidade. No último dia, disseram-me que o Scott não iria lá estar. Porque elas queriam fazer um seminário só comigo. Levaram-me para uma sala, fecharam a porta e as mulheres sentaram-se à volta da mesa, queriam que eu falasse da minha experiência pessoal. Eu disse: "Está bem, conto a minha história. Mas não vamos fazer disto uma catarse." Acabou com toda a gente a chorar, menos eu. A senhora da tradução simultânea disse-me: "Fiz dez tentativas, depois o meu marido divorciou-se. Casou-se com uma rapariga mais nova, teve logo um filho." Meteu-se num táxi e desapareceu.
Tentei quatro vezes [engravidar]. Agora eles [filhos adotivos] têm 31 e 32 anos. Estão em Londres"
Tentou engravidar durante muito tempo?
Tentei quatro vezes, de seguida. Até que desisti, tive uma depressão. Deduzo que todas nós passámos por coisas muito parecidas. Criei uma linha SOS depois dos meus quatro falhanços. Eu e uma amiga psicóloga distribuímos panfletos em clínicas de fertilização com o número da linha de apoio que criámos, na altura era a única forma. Vi tantas mulheres sofrerem, achei que era uma boa ideia a gente reunir-se uma vez por semana em minha casa, quando estava em Portugal. As pessoas responderam avidamente. Toda a gente levava petiscos, era a noite inteira à conversa. Também experimentei criar um husband happy hour, depois arrependi-me e acabei com aquilo. Era para os maridos, não se calavam e embebedavam-se. E diziam que as mulheres não os compreendiam. Íamos para o Procópio.
Adotou dois rapazes, tinham que idades?
Seis e sete anos, portugueses. Eu tinha quase 40 anos, estava casada com o Dick. Ao fim daqueles anos todos, entraram dois miúdos pela casa a dizerem: "Mãe, mãe, mãe!" Puseram-nos em nossa casa em três semanas, porque vinham de uma família problemática. Eram tão magrinhos, assim que os adotámos, fomos passar um mês para um monte alentejano. Quando voltámos de lá, eles estavam maiores, mais altos, mais confiantes. No dia seguinte, metemo-nos no avião para os Estados Unidos. Agora eles têm 31 e 32 anos e eu tenho seis netos: as mais velhas já são adolescentes e o mais novo ainda não fez 1 ano. Estão todos em Londres.
Foi casada três vezes: primeiro com António Mega Ferreira, depois com um académico norte-americano (Dick) e a seguir com o fotógrafo Pedro Palma. É romântica?
O amor é a força motriz da vida e está a perder-se. O Dick, pai dos meus filhos, é um homem maravilhoso com quem ainda hoje me dou lindamente. Casámos em Las Vegas, na capela Candlelight Wedding Chapel, onde se casou Bette Midler e mais umas quantas pessoas. Eu tinha 34 anos, em 1994. Fomos os dois de camisa branca, jeans e botas de cowboy. As minhas botas eram de pele de cobra.
Casámos em Las Vegas. Fomos os dois de camisa branca, jeans e botas de cowboy. As minhas botas eram de pele de cobra"
Tentaram salvar o casamento com terapia de casal?
Por acaso fizemos, mas à terceira consulta achámos aquilo tão divertido que entrámos a rir. O terapeuta declarou-nos curados. Desatámos a fazer apostas pelo caminho do consultório [em Lisboa]. O Dick começou a dizer: "Hoje é um jogo em que tenho de fazer o pino e tu tens de me agarrar enquanto vou cair." O terapeuta punha-nos a fazer uns jogos com cadeiras, nas posições em que achávamos estar em relação ao outro. Acabou ali. O nosso casamento ainda durou uma data de tempo.
Porque é que nunca comprou casa?
Comprei a que o Dick gostava, mas para mim era uma casa odiosa, na Parede. O Dick ficou com tudo o que estava na América, eu fiquei com um casarão, por pagar. Foi entregue à Caixa Geral de Depósitos, a quem tinha pedido dinheiro. Tive que me apresentar à insolvência.
Passa a imagem de rebelde, mas faz cedências?
Sou sempre muito boazinha.
Tem a ver com a formação católica, por exemplo a que teve no colégio de São José de Cluny, em Angola?
Sim, sem dúvida. Tenho orgulho nisso. Vou à missa. Acho que se deve tratar bem as pessoas.
Vou à missa. Acho que se deve tratar bem as pessoas"
Foi para Angola em que fase?
Ainda bebé. Nasci na maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, prematura de sete meses. Estava coberta de eczema e o meu pai disse: "Ainda por cima é feia."
Faz ideia com que peso nasceu?
Não. Faço ideia do meu peso quando tive polio [poliomielite, doença infecciosa]: seis meses depois de ter nascido tinha 2,1 kg. As pessoas tinham medo de me pegar. A boca torta é por causa da polio. O Dick inventou uma expressão sobre o meu sorriso "de gato que acabou de engolir o canário."
Filha de médicos, com três irmãs (uma delas Margarida Pinto Correia, jornalista) e educada em colégios, foi-lhe difícil sair de casa?
Saí aos 17 anos para trabalhar em Trás-os-Montes, numa aldeia com telescola. Foi no ano propedêutico, as aulas eram na TV. Depois a pessoa habitua-se a estar fora de casa.
Tirou Biologia na Faculdade de Ciências de Lisboa e destacou-se na carreira académica. O jornalismo foi um acaso, por viver no mesmo prédio da redação d’O Jornal?
Perguntei [n’O Jornal] se não tinham trabalho para mim. Fui para estagiária, deram-me as centrais ao fim de dois meses. Depois convidaram-me para fazer coisas na rádio e na televisão. Em 1981, eu e o Cáceres [Monteiro, fundador da revista Visão] fomos ao Irão.
Essa viagem tornou-se lendária, como conseguiram lá entrar?
Salazar tinha feito um acordo com o Xá [da Pérsia] para os trabalhadores portugueses poderem entrar e sair do Irão sem precisarem de vistos, porque não causavam problemas e eram parecidos com os iranianos. Na confusão do 25 de Abril e da Revolução Religiosa no Irão, ninguém se tinha lembrado de eliminar esse acordo. Os portugueses podiam entrar, mas não como jornalistas. Nós fomos por terra, pelo rumo do Expresso Oriente, como turistas.
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