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As "Novas Cartas Portuguesas" mantêm-se atuais

16 de abril de 2022 às 10:33

O livro foi publicado em abril de 1972, e banido três dias depois pelo então regime, por "conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública".

As "Novas Cartas Portuguesas", publicadas há 50 anos, "inauguraram um novo tempo na corrente literária do neofeminismo", constituindo-se como "uma forma nova de dizer a pessoa humana e o seu modo de estar no mundo".

Esta tese é defendida por Maria de Lourdes Pintasilgo, no pré-prefácio e prefácio da terceira edição da obra, publicada em 1980, e corroborada pela poeta Ana Luísa Amaral, estudiosa da obra, que confirma a sua contemporaneidade mais de meio século depois de ter sido escrita.

A obra "Novas Cartas Portuguesas" foi escrita em 1971 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, partindo das cartas de amor dirigidas a um oficial francês por Mariana Alcoforado, e nela as autoras denunciavam a guerra colonial, as opressões a que as mulheres eram sujeitas, um sistema judicial persecutório, a emigração e a violência fascista.

O livro, que se assumiu como um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril, foi publicado em abril de 1972, e banido três dias depois pelo então regime, por "conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública".

A obra só conheceria uma segunda edição em 1974, após a Revolução de 25 de Abril, prefaciada por Maria de Lourdes Pintasilgo, que seis anos depois, em 1980, assinaria o pré-prefácio e o prefácio da terceira edição.

Engenheira química, política e única mulher que desempenhou o cargo de primeira-ministra em Portugal (julho de 1979 a janeiro de 1980), Maria de Lourdes Pintasilgo (1930--2004) considerou que "é tal a rotura introduzida pelas 'Novas Cartas Portuguesas' que a sua primeira abordagem só pode ser feita à luz do que elas não são".

Não são uma coletânea de cartas, nem um conjunto de poemas, nem um romance, "são talvez um pouco de tudo isso. E ainda mais: uma nova forma de dizer a pessoa humana e o seu modo de estar no mundo", escreveu Maria de Lourdes Pintasilgo.

Um ensaio "que toca as raízes do ser, um contributo inédito para a antropologia social", no que "recolhe de vida, de sensações, de comportamentos singulares universalizados", acrescentou.

Esta ideia é igualmente defendida por Ana Luísa Amaral - responsável pela elaboração de uma edição anotada da obra, com o texto original de 1972 revisto, e com os prefácios de Maria de Lourdes Pintasilgo -, que sublinha a atualidade da obra, classificando-a como um "clássico".

"As 'Novas Cartas Portuguesas' tratam de situações humanas básicas quer no campo do social, quer no campo literário. Essas situações humanas básicas são a discriminação, a desigualdade de género, a guerra, só para citar algumas. A desigualdade em termos de classe ou de raça. Esta questão também é levantada nas 'Novas Cartas', são situações que dizem respeito ao ser humano", pelo que "embora tenha sido publicado em 1972, é completamente atual", disse, em declarações à Lusa.

Referindo como exemplo a guerra na Ucrânia, a vida das mulheres em países como a Arábia Saudita ou o aumento da violência doméstica durante a pandemia, a poeta e professora universitária assinala que "estas questões existem nas 'Novas Cartas' e transitam para o nosso tempo".

"Do ponto de vista literário, eu não conheço livro em lado nenhum do mundo que tenha sido escrito a seis mãos, que tenha sido escrito por três mulheres e sobre o qual permaneça o mistério sobre quem escreveu que partes", acrescentou.

Também Maria de Lourdes Pintasilgo fez uma referência a este aspeto quando disse que a irmandade anteriormente anunciada por outras escritoras feministas, como Simone de Beauvoir, "nunca atravessou o limiar da obra criadora" até 1971, "até que 3 mulheres portuguesas, escritoras, se põem a fazer um livro".

E juntando a sua voz à de Maria de Lourdes Pintasilgo, Ana Luísa Amaral afirma que "Novas Cartas Portuguesas" "não desafia só a questão do género enquanto categoria sexual socialmente construída, mas desafia também o próprio conceito de género literário", na medida em que não pode ser catalogado.

O livro consiste em 120 textos que entrecruzam cartas, poemas, relatórios, textos narrativos, ensaios e citações, escritos coletivamente por aquelas que chegaram a ser definidas como "três aranhas astuciosas".

Para a também professora universitária de literatura, esta obra "faz explodir o conceito e a estabilidade" dos géneros". Já Maria de Lourdes Pintasilgo escreveu que as 'Novas Cartas' "rompem" e "extravasam".

Pegando especificamente na frase de Pintasilgo que descreve a obra como "uma nova forma de dizer a pessoa humana", Ana Luísa Amaral subscreve que "realmente é um convite que nos é feito para dotar novamente a pessoa humana de dignidade".

Por isso, há cartas em que se simula a voz de um soldado na guerra colonial, que poderia ser um soldado noutra guerra qualquer, mas que aqui "adquire uma densidade mais interessante, porque tem a ver com a raça".

"A pessoa humana não são só as mulheres. Isto não é um livro feminista. É um livro feminista, claro, mas é um livro sobretudo sobre os direitos humanos, sobre o humano, e isto é muito importante", de que são exemplo essas cartas de soldados "que se mostram profundamente vulneráveis".

A obra não se esgota nessa dimensão de tratar a condição das mulheres - do que lhes é consentido e negado, do cerco ideológico que as retém prisioneiras - e, por extensão, do ser humano.

Existe também a "universalidade da obra", que, na altura em que foi escrito o prefácio, já estava traduzida para 10 línguas, era objeto de teses de doutoramento e era levada à cena em versões adaptadas por grupos de teatro em Nova Iorque e em Paris.

"Elas inauguram um novo tempo na corrente literária do neofeminismo contemporâneo", escreveu Lourdes Pintasilgo.

No entanto, até hoje, "Novas Cartas Portuguesas" é uma obra muito mais estudada no estrangeiro do que em Portugal, o que Ana Luísa Amaral atribui ao "incómodo" que causa na sociedade portuguesa, não só porque "mudou profundamente a ideologia então vigente, mas porque fala contra o racismo, contra o sexismo, contra o fascismo, é um libelo contra a guerra colonial".

"É claro que tem de incomodar a direita, mas incomoda também as ideologias instaladas da esquerda", porque "essas ideologias viram, a seguir ao 25 de Abril, como muito mais importante a construção de uma nação", e a questão das mulheres não interessava, o que interessava era a luta de classes, "como se fosse possível pensarmos numa sociedade justa se as mulheres forem vistas com um estatuto de menoridade", defendeu.

Para a escritora, ainda há muito por fazer em relação às mulheres, e consequentemente em relação à igualdade, à justiça e, num sentido mais amplo, em relação à sociedade.

Maria de Lourdes Pintasilgo escreveu que as "Novas Cartas Portuguesas" atingiram um "nível simbólico em que se reconhecem mulheres de todos os continentes e classes sociais" e que o corpo da mulher, como lugar preferencial da denúncia da opressão das mulheres, "funciona como metáfora de todas as formas de opressão escondidas e ainda não vencidas".

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