
Quando eu era menino, líamos A História Trágico-Marítima. Tratava-se, assumidamente, de uma "colecção de relações e notícias de naufrágios, e sucessos infelizes, acontecidos aos navegadores portuguezes", organizada por Bernardo Gomes de Brito, a partir de 1735. Compilada sob o nosso glorioso D. João V, era oferecida ao Rei, como lembrança das agruras colectivas, esse reverso negro dos Descobrimentos.
Na continuada saga do GES, BES e derivados, há menos heróis e santos, mas a tragédia permanece imensa, e as lágrimas tão salgadas como as mais antigas.
Não vale a pena fingir que "isto" é mais uma crise bancária, tal como as que existiram nos casos BPN-BPP, antes na Caixa Funchalense, e ainda antes no Estado Novo e na Primeira República. Para o mal e para o bem, o império do Espírito Santo confundiu-se com o Estado e com toda a "sociedade civil". Cresceu com a fraqueza destes, e também ajudou à sua sobrevivência financeira.
A história da influência política da família, do grupo e do banco está ainda por fazer, além dos recortes de salão e das memórias selectivas. Continuo a achar curioso, por exemplo, o silêncio dos que foram beneficiados pelo mecenato da entidade que agora morre, mesmo quando gritavam contra o capitalismo explorador.
Mas essa é outra história.
A que se conta hoje é complicada e simples. Ao mesmo tempo que o Estado tem a estrita obrigação – através dos tribunais, da Polícia Judiciária e do Ministério Público – de impedir que os portugueses paguem pela queda do gigante (e pelos eventuais delitos), antes que se esgotem todos os bens (existentes ou recuperáveis) dos envolvidos, tem o mesmo Estado o dever de impedir que a confusão continue e alastre.
O Novo Branco é obviamente salvável, mas é preciso salvá-lo: com mais técnica do que política, com mais actos do que palavras, com mais medidas práticas imediatas do que grandes conjecturas sobre futuros que podem nunca vir.
Não desfazendo, a solução Vítor Bento parecia demasiado interna e demasiado interina. Assemelhava-se a uma evolução na continuidade, por um lado, e a uma jogada táctica de recurso, que era apresentada como grande estratégia.
Ninguém pode garantir o que chega a seguir, mas uma equipa de especialistas, vindos de bancos que não faliram nem falharam, ancorada nas novas determinações do BCE, e com rápida entrada em funções (nunca se pode deixar marinar o caos), deve ser capaz de restaurar a confiança dos que ainda podem dar-se ao luxo de confiar. A começar pelas centenas de milhares de pequenos e médios investimentos, colocados neste banco de inteira boa-fé, e sem esperança de juros milagrosos (ao contrário de BPN e BPP).
Se não é o Estado (que devia ter estado no mastro de vigia, como "regulador") a proteger esta parte da sociedade portuguesa, quem a protege?
N’A História Trágico-Marítima a Coroa tentou, até ao impossível, zelar pelos corpos dos que a serviram. Nesta tragédia bancária continuada, a responsabilidade do soberano não é menor.
PS 1 – Uma selecção nacional a sério, revolucionária ("operária" ou "aristocrata", tanto se me dá), atrevida, corajosa (na vitória e na derrota), que faça os portugueses gostarem outra vez de ver futebol, e acentue aquilo que era o nosso "estilo" próprio. Eis o que faz falta.
PS 2 – A Escócia já foi um Estado (essencialmente católico) independente, até 1706, e vive com um parlamento, um executivo, leis e administração próprios, dentro do Reino Unido, desde 1998. Com ou sem secessão, e apesar do alarido de circunstância, o drama é menor do que algures, onde regiões diversas continuam a ruminar as suas independências. O grande problema, ou fronteira, é a capacidade dos Estados multiétnicos lidarem com o problema, sem opressão nem violência. À inglesa.
Primárias ou primitivas?
A exposição ajuda mas o conteúdo pode prejudicar.
É esta a primeira conclusão que tiro dos debates Costa-Seguro. Por um lado, o País que ainda se interessa pelas peripécias partidárias (incluindo a do novo partido marinho) pode habituar-se à ideia de que o PS no poder é inevitável, logo que arrume os móveis da sala. Mas quem perca mais tempo, além de detectar o suor na cara ou a fúria nos olhos, as quedas gramaticais e de cabelo, apercebe-se de que, frente a frente, está ali pouco mais do que nada.
As ideias importantes (por exemplo, a "re-industrialização") só aparecem envergonhadas, e sem contexto. De certeza que, como alternativa a Passos, se arranjava melhor. Por exemplo...
Os que vão morrer saúdam-vos
O que leva um jovem a querer servir o criminoso "Estado Islâmico"? Vida insatisfeita, alienação, manipulação, desejo de aventura. Até ao paroxismo: "Olá mãe, aqui está, martirizado, o teu filho que não servia para nada." Claro que Síria e Iraque são diferentes. Contra o regime de Assad havia a convicção de lutar face a uma tirania bárbara. Na anexação iraquiana (o lema do grupo é "conservar e expandir") existem outros desvalores, entre eles o sonho de dominação.
Mas dos três mil europeus que combatem pelo Islão há também uma quota, não insignificante, que parte pela notoriedade, conferida pela publicidade de media esfomeados. Tão esfomeados, que podem inventar um oásis onde só há deserto.
O que se ouve
O piano de Stefano Bollani (na foto) eleva-se alto em Joy in Spite of Everything (ECM). Daí ao mergulho no mágico diálogo (acordeão/saxofone) do Peirani/Parisien Duo Art, em Belle Époque (ACT). A seguir, as teclas ambientais "nymanianas" de Rita Abranches, no Vagueando (Janela Amarela), antes de chegar ao quarteto de Louis Sclavis, em Silk and Salt Melodies (ECM), com perfume de jazz persa.
E ainda John McLaughlin, que com 70 anos continua e(c)léct(r)ico e vigoroso: ouçam The Boston Record (Abstract Logix). Mais subversiva é a guitarra de Marc Ribot, em Live at the Village Vanguard (PI). E depois lê-se com gosto o início "africano" de Francisco Ribeiro Rosa, em torno de A Raiz do Mundo (QuidNovi).
Artigo publicado na edição nº542, de 18 de Setembro de 2014
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